domingo, 24 de novembro de 2019

*matéria 8


Bifurcações

“[...] trilhas de intermináveis bifurcações que uma pessoa precisa

enfrentar quando caminha pela vida.” (AUSTER, 2017, p. 809)



É minha mãe na imagem. 22 anos. Nenhum filho ou filha ainda, nenhum marido. Sua fisionomia moça e seu olhar sereno me sensibilizam de um jeito imprevisto. Enquanto estudo sua foto 3x4, me flagro a percebê-la não só como mãe, não só como alfabetizadora das minhas compreensões. Percebo-a hoje também como amiga de travessia-vida, amiga de futuro-dúvida. E nossas dúvidas, porque as temos bem demarcadas em 2019, nossas dúvidas fazem com que nos reconheçamos aliados para a nova realidade doméstica que se impôs a ela nos últimos tempos.

 

 metatextualidade

 

As limitações textuais. Releio o parágrafo anterior e noto que seria impossível escrevê-lo com isenção, impessoalizando-o. Diferente do que fiz no arranjo das sete matérias anteriores, mexo agora na voz narrativa, substituo de repente a terceira pessoa pela primeira. E já não sei se posso chamar este texto de matéria. Não sei se, em virtude da dicção colada à pessoalidade, me expresso com o distanciamento e a clareza que se exigem de um material jornalístico. Me pego neste momento hesitando tanto na forma quanto no conteúdo. Hesito em falar sobre minha mãe.  

 

destinos, chances

 

 Embaixo do título que dei para esta suposta matéria, como frase de apoio, há um fragmento do romance 4321, de Paul Auster obra finalista do Man Booker Prize 2017. O livro trata das bifurcações (norte-americanas ou brasileiras) que existem nas trajetórias pessoais de todos nós. Paul Auster oferece quatro destinos possíveis ao mesmo personagem, Archie Ferguson. “Imaginar como as coisas podiam ser diferentes.” (p.55)

Eu olho para a fotografia da minha futura mãe, aos 22 anos dela, e sem querer visualizo destinos alternativos para seu caminho, para sua biografia. Se ela fosse a personagem central do livro 4321, quais opções de caminhada lhe seriam oferecidas? Outra cidade? Outros filhos? Se em Veranópolis a ficção tivesse tomado as rédeas do real e colocado minha mãe à mercê da literatura de Paul Auster, será que ele a teria conduzido para longe de mim e da minha irmã, para longe da nossa chance de nascer?

 

maio de 68

 

Na fotografia da minha mãe, além da atmosfera calma e meio hippie, o que chama minha atenção é a data estampada na parte inferior, o maio de 68 simplesmente o mês mais importante do século XX. O mês decisivo. Se os desdobramentos que começaram durante aqueles trinta dias não tivessem acontecido, a consciência cidadã como a conhecemos hoje estaria mais despreparada, inexistiria em nós uma fagulha contestatória pronta para flamejar.

Em maio de 68, a calmaria de Veranópolis não tinha nada a ver com a impetuosidade que se via em Paris. Minha mãe não participou, na Champs-Élysées, das passeatas estudantis que exigiram o fim das posturas conservadoras, o fim do arcaísmo, o fim das negligências sociais e humanas. Ela não esteve lá. Mas, me valendo aqui da lógica literária de Paul Auster, eu observo a imagem jovem da minha mãe e a posiciono com os braços erguidos no maio de 68 parisiense. Vejo pelas ruas seus cabelos soltos, seus olhos insubmissos. Vejo bifurcações.

 

autoimagem, edição

 

No instante em que eu comento algo sobre sua foto 3x4, me surpreendo que minha mãe rebata que na sua juventude ninguém jamais lhe disse que ela era bonita, nem mesmo meu pai condicionado às regionalidades mais ou menos formais do interior gaúcho nas décadas de 60 e 70. As pessoas não verbalizavam os encantos alheios. “Eu achava que era feia”, ela me diz agora e fica à espera de uma restituição, de um ressarcimento elogioso sobre a beleza dos seus 22 anos. Então eu lhe ofereço as palavras atrasadas e, desse modo, que interessante, acabo editando a autopercepção da minha mãe, acabo editando o modo como ela interpreta sua autoimagem. Uma bifurcação retroativa.

 

AUSTER, Paul. 4321. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. 

domingo, 27 de outubro de 2019

*matéria 7


Jovane coloca no papel

O sonho contemporâneo (e às vezes perigoso) de empreender



No cinema norte-americano, quem sorri o dia inteiro é o personagem Coringa. Na realidade brasileira, é o vendedor informal. “O importante é sorrir”, diz Jovane Cassafuz, 24, “senão o cliente não estabelece contato.” De segunda a sábado, nove horas por dia, ele vende paçocas em Caxias do Sul — e exibe o cartaz que sintetiza a sua filosofia trabalhista. Jovane faz isso principalmente nas paradas de ônibus, local tático, já que os clientes potenciais não podem apressar o passo nem fingir que não estão enxergando as paçocas que ele oferece: 3 por R$ 2.

 

 interesse, necessidade

 

Jovane é são-borjense e, devido à geografia fronteiriça de lá, nunca se esqueceu de prestar atenção na Argentina, “minha bisavó era castelhana”. Em São Borja, ele aprendeu a mexer com música eletrônica, interesse lúdico que pegou dos primos. Chegou inclusive a, como se diz, pilotar a mesa de certas festas, selecionando batidas dançantes que faziam os braços da pista se hastearem.

Jovane aperfeiçoou esse lado musical na PUC de Porto Alegre. Durante o curto período em que viveu na capital, conseguiu lutar por espaço num curso de música clássica. “Quem quer ser produtor musical precisa estudar, e a música clássica é o berço de tudo.” Porém hoje a musicalidade de Jovane anda meio recolhida, muda, pois quem paga as contas em casa é a venda de paçocas.

 

empreender, apreender

 

“Eu quero ir atrás da liberdade financeira”, diz. E para isso cita o livro Pai Rico e Pai Pobre, de Robert Kiyosaki, cujos preceitos advertem para a importância do traçamento de objetivos. Jovane usa para si a metáfora da visão, da luz, “sem objetivos, é como andar cego por aí”. Quem também o inspira é o autor best seller Mario Cortella, “por causa das palavras de coragem e desafio”.

Para empreender Jovane está ciente , é preciso antes apreender, assimilar as técnicas e os truques da administração. Ele chegou a entrar num curso superior, mas precisou abrir mão da atmosfera universitária por razões financeiras. O que Jovane conseguiu fazer até a última lição foi um curso no SEBRAE, travessia que lhe ensinou algumas compreensões básicas sobre o comércio.

 

religião, monarquia

 

Jovane conta que, por dois ou três meses, frequentou de modo assíduo a igreja de São Pelegrino, “fiz parte do apostolado da oração”. Nos encontros, o empreendedorismo dele cedia lugar ao sagrado coração de Jesus, cujos batimentos não abrangiam o comércio e o lucro — ocasiões então para que Jovane fortalecesse também sua humildade, sua parcela filantrópica.

Em relação à política atual, numa mistura de brincadeira e seriedade, Jovane conta que admira o sistema da monarquia. “É mais original.” Sorrindo, cita a rainha Elisabeth e diz que as coisas são mais fáceis quando apenas uma pessoa toma as decisões. Sorrindo uma oitava acima, ele revela que não gosta muito de acompanhar o desenrolar político nacional, não tem essa fé, “em 24 anos, nunca votei”.  

 

tempos modernos

 

Como se sabe, em 1936, os Tempos Modernos de Chaplin já antecipavam o perigo da alienação dentro do trabalho, o perigo de apertarmos um parafuso sem que entendamos ao certo o motivo para isso. Chaplin, desprovido de microfones e megafones, fez uma crítica social e política — insuficiente para que o mundo conseguisse escapar da armadilha.

Nos tempos modernos atuais, as armadilhas se diversificaram. E elas gostam de usar disfarces cativantes. Jovane está consciente das ameaças da informalidade, da precarização das condições trabalhistas, “eu sei que aqui fora eu não tenho garantia de muita coisa.” Empreender (o verbo da vez, o verbo tão usado em palestras TED) está longe de possuir uma definição absoluta. Resolver-se a praticar; tentar, afirma o dicionário Michaelis. Só que o Michaelis lava as mãos e não menciona os perigos ao redor dessas palavras. 


sexta-feira, 4 de outubro de 2019

*matéria 6


Jones, às 19h30

O operador cinematográfico e o cinema não comercial



As certezas que nutrimos. Jones Paulo Rodrigues da Silva, 66, não tem dúvidas: Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore, poderia ser a história da sua vida. No filme, Totó é um coroinha italiano que, sabiamente, troca a igreja pela saleta de projeção do cinema local. É ali que ele conhece o projecionista Alfredo, cujo amor pela atividade será uma fagulha para o menino Totó. Uma fagulha e um destino.

O destino de Jones, em Caxias do Sul, ocorre sempre em horário único, às 19h30. Quintas, sextas, sábados e domingos são os dias em que a Sala de Cinema Ulysses Geremia roda o filme da vez, com Jones/Totó na função de operador cinematográfico. “Prefiro essa denominação a projecionista, mas tu pode usar qualquer uma para descrever o meu cargo.”

 

Caxias cultural,

Caxias farmacoautomotiva

 

Alberto Nora, com um envolvimento de tutor, foi quem ensinou a Jones os truques da projeção e os métodos para substituir um rolo, lá pelo ano de 1966 outros tempos, outras prioridades na cidade. Após dominar as técnicas do ofício, Jones teve a chance de trabalhar em dois cinemas clássicos de Caxias, no Cine Imperial e no Cine Ópera.

Cine Ópera, hoje um estacionamento vertical de seis ou sete andares. Cine Imperial, hoje uma farmácia de manipulação. Remodelagens arquitetônicas que dizem muito sobre a cidade e os tipos de preferência que ela elegeu para si — os carros em vez das viagens íntimas ao imaginário, os remédios em vez dos baratos cerebrais que uma sala de projeção sempre oferece.  

 

formação afetiva, cinema de arte

 

Quando jovem, Jones aprendeu a gostar dos faroestes norte-americanos, o leste em direção ao oeste mítico, os caubóis em direção às planícies Navajo. E gostava de Charlie Chaplin, das suas expressões faciais, de tudo o que o personagem Carlitos conseguia dizer sem pronunciar. Mas o filme que marcou a juventude de Jones foi A Tulipa Negra, com Alain Delon, adaptação do livro de Alexandre Dumas.

 “Desde 1993, depois que parei de trabalhar nos cines comerciais, acho que eu entrei num cinema de shopping só umas três vezes”, Jones diz. Em contraposição aos blockbusters, ele aprendeu a estimar o cinema de arte, aquele que se preocupa menos com efeitos especiais e mais com a fotografia, com o som, com os ângulos da câmera e com as subjetividades das histórias. “É uma proposta bem diferente, a gente começa a exigir mais daquilo que assiste.”

 

18 anos, não mercantil

 

Neste mês de outubro, a Sala de Cinema Ulysses Geremia completa 18 anos de resistência. Jones esteve presente desde o início, desde que a ex-secretária da Cultura (Tadiane Tronca) se mexeu e colocou a sala para funcionar. “Se depender da bilheteria, esse cinema vai fechar logo, o nosso foco aqui é outro”, Jones advertiu Tadiane, como que dizendo no subtexto que a importância da arte crítica deveria estar sempre acima do ganho monetário, da venda de pipocas.

Os filmes da Sala Ulysses Geremia rodam em blu-ray. E são selecionados pela sua qualidade estética e artística, não pelo afã recreativo que existe na maioria dos longas de shopping center. “Nada contra o dinheiro e o entretenimento, eles fazem parte”, diz Jones, “mas a gente tem que reconhecer as outras qualidades que também estão por aí.”

 

Bacurau, resistir

 

Nesta semana, no único cinema alternativo de Caxias do Sul, Bacurau está em cartaz, via Jones. Talvez seja o filme nacional mais importante de 2019, porque estético-crítico-reflexivo do apagar ao acender das luzes. E o mistério bom, explica Jones, é que, além de Bacurau ser arte confrontadora, é também vendaval de público — sessões lotadas em todo o Brasil, inclusive com salva de palmas no fim das projeções.  

Os heróis que às vezes não percebemos. Há 18 anos Jones está naquela saleta miúda atrás da plateia, feito o menino Totó do Cinema Paradiso de Tornatore, solitário na sua função, solitário numa cidade que gosta de substituir cinemas por estacionamentos e farmácias, Jones apertando o play e sendo (talvez sem perceber) alguém que resiste forte, o Bacurau caxiense que reconhece a História e a Arte, jamais virando as costas para a cultura, para a inteligência, para a sensibilidade, jamais se esquecendo de enxergar.  

domingo, 28 de julho de 2019

*matéria 5


A xilofonista

As realidades de Natália Caroline N. Portilho,

a xilofonista da Av. Júlio



Aquela famosa canção dos anos 60 diz: “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Natália não espera acontecer. E faz doze horas por dia em Caxias do Sul, sempre na esquina da Garibaldi com a Av. Júlio. Seu xilofone tem onze teclas cinzas, pequenas, cujas notas musicais são despertadas pelo toque de uma baqueta. Tudo muito rápido e rítmico. Tudo muito a céu aberto.

Aos pés de Natália, fica posicionado o pote que recebe as moedas e as cédulas — pote mágico, porque é dali que sai todo o sustento dela. Aos 29 anos, Natália constrói a vida entretendo musicalmente os pedestres que se aproximam da sua órbita de calçada. “Eu toco fábulas, poemas, histórias.” E ajuda a culturalizar a avenida de uma cidade que atualmente não dá tanta bola à cultura.

 

água, deslocamentos

 

Natália nasceu em Belém, Pará. A convivência com os pais foi uma história abreviada cujos parágrafos Natália prefere suprimir. O que ela não suprime é o fato de que foi morar nos fundos de um salão de beleza, atenta aos movimentos que aconteciam ao redor. Segundo a narrativa de Natália, sua meninice está marcada por uma atmosfera de extremo valor à pureza, à simbologia da água. “Me lembro dos poços naturais de todo o norte, eu amo água.”

Água combina com fluidez, que combina com deslocamento. Natália já se deslocou bastante pelo Brasil. Na Bahia, encontrou aconchego nas lonas de um circo que era tocado por um senhor francês de nome Paolo. “Eu praticava tecido com uma artista espanhola e aprendi a me apresentar naquela corda suspensa, sabe?” Também foi na Bahia que Natália se deparou com a água dos seus sonhos, na Lapa Doce, Chapada Diamantina. “Eu estava bem selvagem lá”, diz e mostra um sorriso ilimitado.

 

filho, distância

 

Ártico Real Cross Nabucodonosor Portilho é o nome do filho de Natália, menino que hoje tem 4 anos. Essa inspiração nominal respeita uma lógica bem misturada. Ártico vem da questão da limpidez da água, do brilho, da transparência. Real se deve ao fascínio que a mãe sente por tudo o que tem a ver com realeza. Cross foi um pintor pontilhista francês, cuja arte inspira Natália. Nabucodonosor é homenagem ao rei babilônico, à dinastia do poder. E Portilho é o sobrenome original de Natália.

Não faz muito que ela perdeu a guarda do pequeno Ártico — assunto sobre o qual Natália se alonga de modo vulnerável. Por isso, aqui aparece apenas uma espécie de índice da história. 1) Juiz de Caxias interpreta que o estilo de vida da mãe não é o ideal para a criança. 2) Menino é conduzido para um abrigo. 3) A mãe se organiza para reconquistar a guarda do filho. 4) A angústia silenciosa que só é suavizada pelo som do xilofone.

 

sotaques, amores estrangeiros

 

Natália tem um sotaque misturado, de difícil classificação. Sotaque que não é percebido nem como nortista nem como sulista. Isso se deve ao fato de Natália já ter morado em vários lugares (PA, BA, SC, RS, Argentina) e também se relacionado com dois estrangeiros. O namorado francês não marcou tanto assim a vida dela. Mas o sueco Farfar sim. “Ele tinha um cabelo dread que vinha até aqui.” Mesmo hoje, após anos do término, após já não existirem mais notícias dele, Natália diz ainda sentir um ciúme irracional de Farfar. “Não sei te explicar o motivo, é meu jeito. Acho que seria preciso um domador de cabra pra domar uma capricorniana que nem eu.”

 

universidade, personagem

 

O estudo auxiliou Natália na sua modelagem interna, na sua sensibilidade. “Pra mim, até um sofrimento brutal pode ser visto como arte.” Durante pouco mais de um ano, ela cursou uma faculdade de Teatro em Belém, na UFPA. Trancou o curso porque achou que era o momento de turistar entre a Bolívia e o Peru, no lago Titicaca. A consequência é que essas experiências itinerantes, junto com a graduação de Teatro, delinearam em Natália um espírito livre e artístico.  

Um espírito que em determinado momento precisou criar uma categoria específica de escudo, ou seja, uma personagem. “Enquanto eu toco xilofone na rua, quem as pessoas enxergam é minha personagem”, diz e mantém o semblante sério. O eco dessa fala revela uma autoconsciência madura, algo que resguarda Natália, que a protege contra certas angústias da realidade. Até porque a personagem (diferente da mãe sem a guarda do filho pequeno) está sempre forte para olhar os vilões nos olhos.  


domingo, 30 de junho de 2019

*matéria 4


Eli

A invisibilidade e o preconceito

contra os homens trans 



No início de cada manhã, em vez do hino nacional brasileiro, as escolas deveriam entoar Shakespeare. “Há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que sonha a tua filosofia”, diz Hamlet na cena V do segundo ato. Puxando para hoje, o que a filosofia de Horácio não consegue captar é que, no mundo dos homens, há várias masculinidades possíveis, não só a masculinidade fálica.

Até seus 20 anos, Eli se reconhecia como mulher cisgênero e lésbica. “Mas quando eu dizia isso em alto e bom tom eu sentia que estava mentindo.” Essa automentira começou a ser desfeita quando Eli descobriu que existiam homens trans: um território novo e habitável. Primeiro, pesquisou sobre o que estava sentindo. Depois, entrou em contato com alguns trans. “Percebi que os sentimentos dessas pessoas e os meus combinavam.”

Porém essa combinação demorou até se estabelecer. O autoconceito de Eli teve várias configurações até chegar ao ponto em que se encontra hoje, aos 25 anos: um homem trans. “Passei um bocado de tempo até aceitar que a identidade da gente deve fluir quando não nos sentimos confortáveis.” Quem o ajudou (e ainda ajuda) no processo transexualizador foi a namorada, Beatriz, com quem ele mora no centro de Curitiba.

No seu passado de mulher cis e lésbica, Eli enfrentou a coleção de preconceitos clássicos. “De ser chamado de sapatão na rua e a não aceitação da família.” Isso já foi. Em 2019, as hostilidades contra ele são de outra escala, já que homens trans sofrem desrespeitos numa dicotomia: ou são tratados com negação ou se tornam um alvo literal. É seu fado. 

lésbica masculina,

homem trans

 

O primeiro dos termos acima, se pronunciado com peçonha na saliva, soará ofensivo. Sem peçonha, é um termo usado até em artigos científicos, dentro dos sentidos das lesbianidades. Dito isso, surge a pergunta: qual é a fronteira entre uma lésbica masculina e um homem trans? “A fronteira é a autoidentificação”, diz Eli. Diz ainda que, à medida que estuda questões sobre sexualidade e gênero, sente-se cada vez mais ligado às bandeiras que adotou. Bandeiras coletivas. Mas Eli faz questão de realçar sua singularidade. “Construo minha expressão de gênero de um jeito todo meu, único.”

O segundo termo do subtítulo é bem mais vulnerável, inclusive no próprio movimento LGBT. “Falando do T, dentro do movimento a invisibilidade e o preconceito contra pessoas trans é aterrorizante”, denuncia Eli. Terror também é a expectativa de vida para trans no Brasil, que (segundo a ANTRA) é de 35 anos. Não por doença. 35 anos e então acontece o cerco no beco sem saída, feito uma cena de Scorsese. A transfobia no Brasil não se contenta só com memes de WhatsApp, ela arregaça com barra de ferro, madeira, pedra, punho fechado. Sempre em bando.

 

ex-nome, transição

 

“É extremamente invasivo e desrespeitoso perguntar o nome pelo qual uma pessoa trans respondia antes da transição”, diz Eli Bruno do Prado Rocha Rosa. Graças à publicação do Provimento nº 73/2018, ele conseguiu retificar seus documentos no ano passado. Explica que escolheu o novo nome de acordo com dois critérios: que fosse curto e que fosse neutro. “O composto Bruno foi uma adição apenas porque seria esse o nome que minha família teria me dado caso eu tivesse nascido com pênis.”

Antes do 73/2018, pessoas trans não conseguiam a retificação de seus nomes sem laudos psicológicos arrastados. E precisavam de sorte, pois a decisão judicial corria sempre o risco de cair nas mãos de um juiz relutante – como se identidade de gênero fosse uma ameaça à ordem-e-progresso. Hoje, o processo de alteração de nome para trans está menos invasivo: independe de autorização externa, de tratamento hormonal, de transgenitalização.

 

ginecologia, estética

 

Homens trans precisam de ginecologista, ainda que relutem. Só que essa relutância tem fundamento – é um jeito de resguardo, autodefesa. Porque ainda existe desinformação por parte de muitos ginecologistas. E de recepcionistas, cujas perguntas deslocadas podem constranger. “À parte da saúde ginecológica, eu faço exames de sangue e tenho consultas com uma endocrinologista pelo SUS”, diz Eli. No CPATT de Curitiba, ele tem acesso a um atendimento exclusivo para pessoas trans e consegue tirar dúvidas em relação ao seu corpo.

Eli conta que, para ele, os conceitos de masculino e feminino não fazem tanto sentido. “Ter o peito liso não é ser masculino, como ter seios volumosos não é feminino.” A partir dessa fala, nota-se que a escolha de formatos corporais não tem a ver com gênero, mas sim com gosto individual. Pessoas trans (bem como pessoas cis) podem desejar ou não se submeter a cirurgias reparadoras. No caso de Eli, existe a vontade de fazer a mastectomia, “por questões estéticas, do mesmo jeito que alguém poderia querer fazer uma rinoplastia ou uma lipo”.

 

pertencimento, seletividade

 

Nos círculos masculinos da sociedade, as atitudes machistas podem caminhar nas linhas ou nas entrelinhas. Depende do círculo. Depende do que está em jogo. “Muitos homens trans adotam posturas machistas para serem vistos como iguais entre homens cis e eu compreendo que isso parte de uma necessidade de pertencer a um grupo”, diz Eli. Nada mais humano: o grupo. Por outro lado, há trans que não se sentem impelidos a legitimar o machismo. Resistem. Mesmo que precisem abrir mão do amparo de alguns círculos.

Seletividade. “A saída pra manter alguma estabilidade emocional tem sido me cercar de pessoas trans ou pessoas empáticas ao movimento trans”, diz Eli, num desabafo sem suspiros. Ficar ao lado de gente esclarecida. É por isso que nos grupos de convívio dele há um fluxo expressivo de professores. Eli faz duas graduações: Filosofia na UFPR e Biblioteconomia na Uniasselvi – cursando ainda uma extensão em LIBRAS. E trabalha na Casa de Leitura Nair de Macedo, onde organiza seus rendimentos, suas amizades, suas leituras.

feminismo,

realismo fantástico

 

“Se me perguntam se eu sou feminista, eu prefiro me colocar como pró-feminismo. O local de fala não é meu, é das mulheres, ainda que haja pautas em intersecção com homens trans”, diz Eli, num tom firme e estável. Tom de quem pesquisa. Tom de quem sabe que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a filosofia de Horácio.

Até porque Horácio não pôde ler Cem anos de solidão. Eli pôde. “Foi uma leitura e tanto pra mim.” Deve ter sido, pois o realismo fantástico instigou Eli a se expressar na literatura: já publicou três livros. Mesmo sabendo que hoje as pessoas preferem audiovisuais. Mesmo sabendo que a escrita é uma prática sem muito retorno. Não importa. Tanto a literatura quanto a identidade trans são assuntos pessoais – não dependem de tapinhas nas costas. No centro de Curitiba, a vida de Eli está ok assim.


terça-feira, 18 de junho de 2019

*matéria 3


Desdém gastronômico

A indiferença de grande parte dos caxienses pelas comidas de rua, pelas barraquinhas metálicas de esquina 




O antropólogo Franz Boas tinha um moleskine bege, a capa com orelhas. Foi ali que ele escreveu (em alemão e inglês) uma ideia que sacudiria forte o tapete da antropologia. Mais ou menos assim... Não é a herança biológica a responsável pelos hábitos e condutas do ser humano. Não são os genes. O que na verdade nos faz viver do jeito que vivemos são os fatores culturais do entorno: linguagem, moralidades, protocolos, heróis compartilhados, ordenação do que dá ou não status. Bem como os vínculos estabelecidos com a comida.

Em Caxias do Sul, por exemplo, região da farta mesa italiana, a relação com as barraquinhas metálicas de esquina ainda é ambígua. E meio preconceituosa. Para certos grupos sociais daqui, existe a interpretação de que almoçar um cachorro-quente na calçada pode soar como um sinal de desprestígio – ou rebaixamento financeiro. Amarrando algumas opiniões que estão soltas pela cidade, é identificável o pensamento de que as barraquinhas metálicas de esquina são uma opção para as pessoas que não cultivam o suposto bom gosto.

“Eu já senti isso em Caxias”, diz Nelfy Rosa Vargas Campos, 49, colombiana que vende cachorro-quente numa barraquinha vistosa, ajeitada, na Av. Júlio com a Feijó Júnior. Embora vivendo em Caxias há dezesseis anos, ela ainda encaixa um pouco de espanhol nas frestas do português – encaixe que faz levantar uma atmosfera rica de multiculturalismo, de narrativas transversais. “Às vezes eu noto aqui um olhar de..., tu sabe. Lá na Colômbia a gente gosta de comer na rua. Mucho. A rua é cheia de sabor.”

 

a performance dos Food Trucks

            

Eventos de Food Trucks não possuem relação com as barraquinhas metálicas de esquina. São fenômenos diferentes. Metaforizando um pouco, é como se os Food Trucks estivessem dentro de uma performance, de uma manifestação teatral: há sempre um horário marcado para eles, há o palco específico, há o preço mais elevado, há a estetização do ambiente – características válidas que cumprem sua função, mas que não conversam com a proposta diária e espontânea das barraquinhas raiz.

Aliás, em eventos com Food Trucks (caminhões) não existe espaço para os Food Carts (carrinhos). A barraquinha metálica de crepe ou hot dog dificilmente ganha uma oportunidade nesses círculos, já que seu show é menos pirotécnico. “Sabe o que mais? Nosso problema é também com o poder público. A gente tá sempre na corda bamba, a prefeitura já ameaçou tirar a gente daqui como fizeram com a banca de revista da praça”, diz Paulo Valença, 64, que há vinte e cinco anos rege sua barraquinha metálica na esquina da Av. Júlio com a Moreira César.

Ele faz um cálculo de cabeça e diz que seria preciso ter uns quarenta mil reais para adquirir um Food Truck “com todas aquelas aparelhagens”. Seu objetivo é outro. Seu público-alvo são as pessoas interessadas numa comida simples mas saborosa, com preço mais acessível, cachorros-quentes que, para serem vendidos, não precisam de um evento divulgado em redes sociais. Na sua esquina de vinte e cinco anos, Paulo vende hot dogs autossuficientes.  

 

pancho, chivito, choripan

 

Seria ingênuo e desonesto comparar Caxias do Sul com outras cidades – mas o que dá para fazer é falar sobre outras cidades sem citar Caxias na mesma frase. Afinal, é inteligente olhar para os lados. E Montevidéu está quase ao lado. Lá, ao que tudo indica, comer em pé na calçada é uma prática mais presente, mais intuitiva. A predisposição rueira faz com que ninguém estigmatize a gastronomia de calçada, a alimentação despretensiosa.

Lauren Fogaça, 20, editora de audiovisuais, viveu oito anos no Uruguai e tem uma relação afetuosa com Montevidéu. “É quase um ritual social por exemplo tomar um mate na rambla todos os dias no fim da tarde. Então o que eu acho é que a cultura da comida de rua lá vem bem natural, porque é um pessoal que já se apropriou desse espaço.” E nesse espaço aberto há choripans, panchos, chivitos, dulce de leche. Há convívios e sociabilizações.

 

estreitamento, psicologia, case

 

Cidades que não alargam suas calçadas acabam alargando suas ruas – a Sinimbu em Caxias chega a ter quatro pistas de rodagem, como uma Freeway. O efeito chicote é menos superfície para que pedestres se encontrem, ocupem ambientes, façam refeições improvisadas ao ar livre. Um estreitamento da circulação a pé. Quem sabe esteja aí uma das chaves explicativas para a indiferença de muitos caxienses pelas barraquinhas de esquina.

A outra chave pode estar na psicologia da cidade: o legado de fartura italiana e certa postura de sofisticação empresarial. Mas essas são apenas teses, suposições que explicariam ou não o desdém de algumas pessoas pelos cachorros-quentes a céu aberto. Se o antropólogo Franz Boas estivesse vivo e se oferecesse para etnografar a cidade, aí sim haveria uma resposta científica. Quatro ou cinco meses de observação participante dele, enchendo seu moleskine com anotações. Talvez Caxias do Sul virasse um case importante para a antropologia.