sábado, 4 de julho de 2020

*matéria 11


Nelfy abraça os recomeços

Os descaminhos e os cachorros-quentes da colombiana de Miranda


Se a Netflix descobrisse a história de Nelfy Vargas, talvez a transformasse em sua nova série. Roteiro não faltaria. Drama latino-americano não faltaria. Essa afetuosa colombiana de 50 anos há 16 no Brasil veio para Caxias do Sul em busca de um recomeço, de uma reinvenção identitária. Isso porque alguns trechos do passado dela se tornaram pesados demais, roteirizados demais, como se o excesso de reviravoltas tivesse esgotado o olhar de Nelfy.
Eis aí algo em comum entre a Colômbia e o Brasil: embora sejam países ricos de culturas e de paisagens, ambos possuem algumas facetas menos simpáticas. Facetas atravessadas pela violência, pelo mercado oculto, pelos jogos de poder que muitas vezes causam danos colaterais. É por isso que não há novidade no fato de que colombianos e brasileiros, de uma hora para outra, correm o risco de ser golpeados pelo destino. Nelfy foi golpeada quatro vezes.
Maria e José
Existe uma coincidência de nomes. E de tragédias. A Bíblia relata em seus evangelhos que o filho de Maria e José foi brutalmente assassinado. Já na Colômbia dos anos 1990 os assassinados foram Maria e José, os pais de Nelfy pais que estavam inseridos na política local. Chamavam-se Maria Dalis Campo e José Vargas, nomes que há três décadas vivem na lembrança, na interioridade de Nelfy.
Por cinco segundos, a voz dela hesita em continuar. São 13h40 de terça-feira e, na esquina da Avenida Júlio com a Feijó Júnior, o barulho reincidente do trânsito está preenchendo o silêncio de Nelfy. Não há insistência para que ela continue a falar, mas assim mesmo surge o dado faltante: na Colômbia, além dos pais de Nelfy, um dos irmãos e o primeiro marido dela também foram assassinados.
cachorro-quente, interculturalidade
Quando atende clientes caxienses, Nelfy usa uma linguagem meio híbrida, rica, com um pouco de espanhol encaixado nas frestas do português. O interessante é que às vezes a barraquinha dela se transforma num ponto de encontro para os colombianos que vivem aqui, o que faz surgir uma atmosfera cheia de interculturalidade, de narrativas estrangeiras tudo isso ao lado da simpatia de Nelfy, da atitude convidativa dela, tornando a colombiana uma anfitriã que sabe servir e agradar.
Roosevelt, Miranda
Nos anos 1930, Roosevelt foi o 32º presidente dos EUA. Hoje, é o atual marido de Nelfy. “Ele é brasileiro, de Belém do Pará”, ela diz. E deixa que os olhos brilhem forte ao descrever Roosevelt: “É meu companheiro, meu amigo, meu amor, minha tranquilidade”. Junto com eles, em Caxias, vivem os dois filhos de Nelfy, Cristian e Mairon — um trabalha numa churrascaria, já o outro lida com descarga de caminhões e estoque de mercadorias.
Nelfy conta que tenta visitar a Colômbia a cada quatro anos, para rever parentes e lugares. Sua cidade natal se chama Miranda e está localizada no Departamento de Cauca. É uma localidade pequena — Nelfy supõe que uns 25 mil colombianos talvez vivam lá hoje. Conforme a narração dela, a infância em Miranda foi divertida e girou em torno de subidas em árvores e degustações de frutas. “Algumas frutas que a gente tem lá eu nunca achei por aqui”, diz e abre um sorriso bilíngue.
entrosamento, salmo 91
Como todo mundo sabe, o entrosamento entre Brasil e Colômbia cresceu muito em 2016, quando o voo da Chapecoense caiu em solo colombiano, próximo a Medellín. Nelfy comenta que, se por um lado foi uma perda difícil para as famílias envolvidas, por outro lado ela percebeu uma aproximação carinhosa entre os países, como se brasileiros e colombianos tivessem se tornado irmãos, cúmplices na dor.
Dor. Perda. Descaminho. Situações de vida que Nelfy conheceu nos anos 1990 na Colômbia. E que a aproximaram do salmo 91, o preferido dela, cujo quinto versículo é direto: “Não temerás os terrores da noite, nem a seta que voa de dia”. Até porque de dia Nelfy permanece focada no cachorro-quente mais multicultural de Caxias do Sul. “Às vezes chego a vender 30 no mesmo expediente”, ela diz, abraçando a si mesma, abraçando aqueles quatro familiares que — embora apenas lembranças — ainda a acompanham de perto.

*matéria 10


André e seus plurais

A versatilidade do trabalhador mais sorridente da Av. Júlio


Não é figura de linguagem: André Ribeiro da Luz, 55, tem quatro mãos. Suas mãos extras são amadeiradas e foram construídas por ele mesmo, “já estão na sexta geração”. As gerações anteriores das mãos extras de André eram mais pesadas, mais ásperas, características que o estimularam, feito um geneticista, a sofisticar o próprio corpo. A única limitação dessas mãos complementares é que elas possuem apenas um dedo, o indicador — mas nada que atrapalhe a sua função, que é ficar apontando para a Periquito da Sorte Loterias.
A Periquito da Sorte foi sortuda em achar alguém como André, cujas tarefas na lotérica transitam por no mínimo cinco frentes: propagandista, recepcionista, segurança, designer e organizador de filas. Ele é o faz-quase-tudo, o joker do baralho, uma polivalência que André sempre exerce com desvelo e cortesia, com proatividade e delicadeza, traços de caráter que ele teve o cuidado de transmitir também aos quatro filhos Lucas, Gabriel, Narayna e Miguel.

a casa, a voz

André é caxiense e nasceu em casa, no número 65 da Borges. Nascer em casa deve ter feito com que ele se sentisse à vontade consigo desde o primeiro minuto: a familiaridade, o pão caseiro, os rostos domésticos. O inusitado é que o nascimento caiu em 31 de março de 65, exatamente um ano após o golpe militar no Brasil, como se o menino André tivesse sido enviado para mostrar que a truculência precisava ceder espaço à gentileza.
André é gentil. E possui uma fala cadenciada. Sua alocução tem a feitiçaria de atrair os pedestres da Av. Júlio e da galeria JC. “Loterias é logo ali, logo ali, logo ali”, ele entoa, sem exagerar na entoação. A parte divertida é que, segundo o testemunho e a piscada de olho de André, as Lojas Colombo “pegaram de empréstimo” essa marchinha do “logo ali”. Marchinha que foi aproveitada também pelo carnaval de Caxias, pois de repente surgiu aqui uma festa chamada “O carnaval é logo ali”. Ou seja, André é compositor, ainda que lhe falte copyright ©.

o monge


Existe um ponto-chave no passado de André. Em 1983, o ano da guinada, ele sentiu a necessidade de virar monge. É fácil visualizá-lo... Os mantras, a fumaça espiralada dos incensos, a raspagem do cabelo, a indumentária açafranada. É fácil visualizar o seu sorriso ao mesmo tempo alegre e triste: alegre devido aos encontros semanais com a iluminação, triste devido à consciência do mal onipresente que se alastrava pelo mundo.
Época em que ele escutou uma conversa reveladora-meio-profética entre um padre e o Mestre Prabhupada, o que fez com que André não perdesse tempo e fundasse para si uma aura de tranquilidade, de comunhão com o humanismo. A juventude e as emoções dele no trabalho íntimo da garimpagem de referências, garimpagem de novos pontos de vista buscas que todos nós (comunistas ou fascistas, Sargentos Garcia ou Zorros) jamais cessaremos de fazer.
a capital, o interior

André se experimentou em Porto Alegre por vinte anos. Foi vendedor na Rua da Praia e depois abriu um restaurante indiano no Bom Fim, Rua Tomaz Flores. Fez ainda bicos de figurante em pelo menos duas ocasiões. 1) Na metade dos anos 80, dá para vê-lo numa das gravações de fim de ano da Rede Globo, as mãos dele no gingado da música. 2) É possível também avistar André num dos videoclipes da banda Graforréia Xilarmônica, ele aparece de relance atrás de um anão, “eu pesava 108 kg naqueles dias”.
De volta a Caxias, logo em frente ao seu atual local profissional, André vendeu incensos e itens xamânicos durante muito tempo. “O problema foi que no governo Guerra a gente não conseguiu mais vender ali, por causa duma reforma no prédio.” Eis então que a Periquito da Sorte Loterias teve a presença de espírito de contratar André, que há três anos está ali com as suas quatro mãos, o trabalhador com o maior número de sorrisos por minuto da Av. Júlio.

o Bhagavad-Gita, a luz

O texto Bhagavad-Gita tem a ver com os hindus, com Krishna, com a sublime canção. E tem a ver com André, que busca nessa leitura o aprofundamento das sensibilidades, o avanço irreversível do eu. Um eu que talvez a Periquito da Sorte Loterias não tenha a sorte de conhecer por completo. Um eu que, ao longo das horas vagas e das eventuais insônias, permanece focado na autoinstrução sobre a sociedade, sobre o homem, sobre a história do mundo. Um eu que, além das quatro mãos trabalhadoras, possui no próprio nome quatro pontos intensos de luminosidade: André Ribeiro da Luz.