terça-feira, 31 de março de 2020

*matéria 9


Mayron e Bianca: os sem-teto nos tempos do corona

Casal morador de rua recebe abrigo nos Pavilhões da Festa da Uva, protagonizando metáfora viva a livro de García Márquez


                                             

        Mayron e Bianca não leram O Amor nos Tempos do Cólera, de García Márquez. Mas são os protagonistas de O Amor nos Tempos do Corona. “Parece mesmo uma história de livro”, diz Mayron Soares dos Santos, 27, “porque esse vírus tirou a gente da rua”. Tanto ele quanto ela percebem a demão de ironia, o inusitado do contexto: um vírus oferecendo a uma parcela de moradores de rua a possibilidade temporária de um teto fixo, 24h, sete dias por semana.

Semana em que Bianca Pereira Macedo, 22, sente-se muito feliz ao lado de Mayron, o que não deixa de combinar com a página 97 do livro de García Márquez: “O amor correspondido lhe havia dado uma segurança e uma força que não conhecera antes”. Segurança e força que fizeram com que Bianca, na saúde e na doença, no fechado e no aberto, escolhesse Mayron para ser o pai de seu filho.

 

o pequeno, o aviso

 

O pequeno Miguel Djiovanny tem apenas três meses. “É nome italiano”, diz Bianca. Quis o vento do calendário que Miguel nascesse em 25 de dezembro, feito um menino Jesus sem endereço próprio para nascer porém um menino Jesus que, diferente do original, não conseguirá multiplicar o pão tão facilmente assim. E que hoje seria julgado se bebesse o vinho sagrado, já que a maior parte dos cidadãos (com teto) defende que os sem-teto não deveriam consumir álcool.

Miguel Djiovanny não está com os pais no refúgio provisório dos Pavilhões da Festa da Uva. “O juiz não deu permissão”, diz Mayron. Pai e mãe estão cientes de que é melhor assim, é mais seguro esperar um pouco até pegar o filho de volta. Durante este recolhimento quase mundial, o pequeno foi acolhido por um abrigo aqui de Caxias do Sul. “Eu prefiro que tu não bote o nome do abrigo”, Bianca avisa, serena, uma voz firme que dispensa de Mayron a tarefa de reforçar o aviso.  

 

a desintoxicação, a tatuagem

 

Além de evitar o contágio do coronavírus, o período transitório nos Pavilhões da Festa da Uva está servindo para que Mayron e Bianca larguem as drogas. “A gente quer se livrar de uma vez do crack”, ela diz. E menciona com um orgulho apertado que, ao longo da gestação de Miguel Djiovanny, conseguiu ficar sete meses longe do cachimbo, do bombril e da tulipa. “É difícil, mas a gente tá indo bem.”

Bianca não oculta que já passou um tempo presa. Naquele outro tipo de quarentena, quando era possível, ela tatuava outras detentas, arte que captou do pai. “Eu era adolescente e treinava num pedaço de couro, criando um monte de desenho.” Pelas contas dela, fez 63 tatuagens (sem cobrar) enquanto esteve detida, usando caneta, agulha e “aquela maquininha”. O curioso é que, embora tatuadora, Bianca jamais foi tatuada.

 

a faxina, o alheamento

 

Cerca de 100 moradores de rua estão hoje nos Pavilhões da Festa da Uva, divididos em alas subjetivas e alegres. Seus quadrados respeitam um intervalo conveniente entre um e outro, deixando que o ar circule. No beco 01, batizado de “Os favelas”, Bianca faz um sinal decidido para Mayron, um sinal de que, antes da foto no quarto deles, ela quer fazer uma faxina relâmpago no ambiente, quer alinhar o criado-mudo improvisado e esticar o lençol branco-florido.

A vontade dela é satisfeita e, nesse meio-tempo, vem à tona que alguns dos sem-teto ao redor estão alheios ao novo vírus, alheios à inesperada rixa entre saúde e economia. “Tem muitos aqui que se acomodaram e não querem nem saber”, diz Mayron, meio envergonhado, sem desconfiar de que no Brasil inteiro vários moradores de condomínio também se acomodaram e não querem nem saber.

 

o pescador de ilusões, a plateia

 

Na mesa de lanches, às 10h28, Mayron interrompe o sanduíche para cantar e tocar “Pescador de ilusões”, da banda O Rappa. Sua voz se intensifica conforme exige a letra, conforme exigem também seus próprios sentimentos, sua própria exigência de expressão — que se desenvolveu via autodidatismo, sem aulas particulares, sem paredes limitadoras e tetos de gesso que sempre acabam encaixotando o som.

Com timidez, sozinha na plateia da mesa, Bianca mexe os lábios e acompanha a música do namorado. A atenção só para Mayron, os olhos dela como que projetando o futuro pós-corona ao lado do pescador de ilusões e do filho deles. Os braços de Bianca apoiados na mesa dos Pavilhões da Festa da Uva, março de 2020, o mês em que os sem-teto de todo o Brasil ganharam um teto pelos motivos errados.