Casal morador de rua recebe abrigo nos
Pavilhões da Festa da Uva, protagonizando metáfora viva a livro de García
Márquez
Mayron
e Bianca não leram O Amor nos Tempos do Cólera, de García Márquez. Mas são os
protagonistas de O Amor nos Tempos do Corona. “Parece mesmo uma história de
livro”, diz Mayron Soares dos Santos, 27, “porque esse vírus tirou a gente da
rua”. Tanto ele quanto ela percebem a demão de ironia, o inusitado do contexto:
um vírus oferecendo a uma parcela de moradores de rua a possibilidade temporária
de um teto fixo, 24h, sete dias por semana.
Semana
em que Bianca Pereira Macedo, 22, sente-se muito feliz ao lado de Mayron, o que
não deixa de combinar com a página 97 do livro de García Márquez: “O amor
correspondido lhe havia dado uma segurança e uma força que não conhecera antes”.
Segurança e força que fizeram com que Bianca, na saúde e na doença, no fechado
e no aberto, escolhesse Mayron para ser o pai de seu filho.
o pequeno, o aviso
O
pequeno Miguel Djiovanny tem apenas três meses. “É nome italiano”, diz Bianca. Quis
o vento do calendário que Miguel nascesse em 25 de dezembro, feito um menino Jesus
sem endereço próprio para nascer — porém um menino Jesus que, diferente do
original, não conseguirá multiplicar o pão tão facilmente assim. E que hoje
seria julgado se bebesse o vinho sagrado, já que a maior parte dos cidadãos
(com teto) defende que os sem-teto não deveriam consumir álcool.
Miguel
Djiovanny não está com os pais no refúgio provisório dos Pavilhões da Festa da
Uva. “O juiz não deu permissão”, diz Mayron. Pai e mãe estão cientes de que é
melhor assim, é mais seguro esperar um pouco até pegar o filho de volta.
Durante este recolhimento quase mundial, o pequeno foi acolhido por um abrigo
aqui de Caxias do Sul. “Eu prefiro que tu não bote o nome do abrigo”, Bianca
avisa, serena, uma voz firme que dispensa de Mayron a tarefa de reforçar o
aviso.
a desintoxicação,
a tatuagem
Bianca
não oculta que já passou um tempo presa. Naquele outro tipo de quarentena,
quando era possível, ela tatuava outras detentas, arte que captou do pai. “Eu
era adolescente e treinava num pedaço de couro, criando um monte de desenho.”
Pelas contas dela, fez 63 tatuagens (sem cobrar) enquanto esteve detida, usando
caneta, agulha e “aquela maquininha”. O curioso é que, embora tatuadora, Bianca
jamais foi tatuada.
a faxina, o
alheamento
Cerca de 100 moradores
de rua estão hoje nos Pavilhões da Festa da Uva, divididos em alas subjetivas e
alegres. Seus quadrados respeitam um intervalo conveniente entre um e outro, deixando
que o ar circule. No beco 01, batizado de “Os favelas”, Bianca faz um sinal decidido
para Mayron, um sinal de que, antes da foto no quarto deles, ela quer fazer uma
faxina relâmpago no ambiente, quer alinhar o criado-mudo improvisado e esticar
o lençol branco-florido.
A vontade dela é
satisfeita e, nesse meio-tempo, vem à tona que alguns dos sem-teto ao redor
estão alheios ao novo vírus, alheios à inesperada rixa entre saúde e economia. “Tem
muitos aqui que se acomodaram e não querem nem saber”, diz Mayron, meio
envergonhado, sem desconfiar de que no Brasil inteiro vários moradores de condomínio
também se acomodaram e não querem nem saber.
o pescador de
ilusões, a plateia
Na mesa de lanches, às
10h28, Mayron interrompe o sanduíche para cantar e tocar “Pescador de ilusões”,
da banda O Rappa. Sua voz se intensifica conforme exige a letra, conforme exigem também seus próprios sentimentos, sua própria exigência de expressão — que se
desenvolveu via autodidatismo, sem aulas particulares, sem paredes limitadoras e
tetos de gesso que sempre acabam encaixotando o som.
Com timidez, sozinha na plateia da mesa, Bianca mexe os lábios e acompanha a música do namorado. A atenção só para Mayron, os olhos dela como que projetando o futuro pós-corona ao lado do pescador de ilusões e do filho deles. Os braços de Bianca apoiados na mesa dos Pavilhões da Festa da Uva, março de 2020, o mês em que os sem-teto de todo o Brasil ganharam um teto pelos motivos errados.
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