quarta-feira, 30 de setembro de 2020

*matéria 13

 

Dame Ndiaye é do mundo

Após rodar por muitos lugares e culturas, artista senegalês escolheu a vida em Caxias do Sul


Dame Ndiaye é do mundo. E por isso sabe se expressar em cinco idiomas: francês, inglês, espanhol, italiano e português. Sem contar o dialeto wolof, que é o titular em Dakar, a capital senegalesa, cidade onde Ndiaye nasceu e se criou. A infância em Dakar ofereceu a ele muito futebol e muito banho de mar. Era chute-passe e depois braçada-mergulho: a meninice que toda criança deveria ter. Só que Ndiaye cresceu, prestou atenção e viu que bola e mar sozinhos não fariam um homem.

O início da vida adulta foi difícil para ele no Senegal. Ainda mais porque os pais de Ndiaye morreram cedo. O pai era um motorista dedicado. A mãe, uma dona de casa que criou seis filhos – os cinco irmãos de Ndiaye continuam vivendo no Senegal, casados, todos envolvidos com o comércio. Então coube a ele o papel aventuroso de viajante, de entregador de notícias do mundo, de menino crescido cuja atração pelos mapas-múndi não terminaria tão cedo.

a África, a Europa

Ndiaye conta que já viajou por quase toda a África. Sem pegar avião. “É mais barato de ônibus”, ele diz, com calma, a língua portuguesa saindo fácil por trás da máscara protetora. Foram viagens exploratórias que lhe deram uma consciência mais afiada a respeito do continente africano, da negritude, das origens do homo sapiens. Na Costa do Marfim, por exemplo, resolveu alongar um pouco a sua estadia, vivendo no país durante três anos. “Eu gostava de lá.”

Mas a África ficou pequena para Ndiaye. E a Europa, essa sedutora, começou a se insinuar no imaginário. Insinuações que fizeram com que Ndiaye se experimentasse na Espanha, França e Itália. Ele fala sobre Nápoles, cidade do Vesúvio e da Camorra, cidade que reúne as maiores contradições italianas: dinheiro e lixo, arte e degradação, natureza linda e certa feiura de espírito. Como em todos os lugares pelos quais Ndiaye já havia passado, ele sabia que Nápoles seria só uma baldeação, parada temporária, porque o Brasil já havia se infiltrado em seus pensamentos itinerantes.

o Brasil, os pontos não turísticos

O Rio de Janeiro foi a largada de Ndiaye por aqui. Dividia um apartamento com amigos em Niterói. E ia todos os dias ao fervo de Copacabana e da Lapa, para vender os seus caprichados artefatos de madeira: esculturas de faces e silhuetas. Depois de incorporar o jeito carioca, ele alternou períodos em São Paulo e Curitiba, até se descobrir em Caxias do Sul, cidade dos imigrantes italianos, hoje dos imigrantes senegaleses. E haitianos. E venezuelanos.

Ndiaye nunca teve tempo extra para visitar pontos turísticos. Não foi ao morro do Cristo nem ao Pão de Açúcar. Não fez caminhadas preguiçosas pelo Minhocão paulistano nem pelo Edifício Copan. Não descobriu a curitibana Ópera de Arame. Mas, diferente de uma parcela enorme de brasileiros polarizados que evitam uns aos outros, Ndiaye conversou com muita gente, sempre olhando nos olhos, sempre intuindo que, mais do que os pontos turísticos, o que vale mesmo são as conexões entre seres, os pontos humanos.

o caxiense, o gaúcho

Aos 47 anos, Ndiaye está há três em Caxias – foi inclusive casado por um tempo com uma caxiense. Se por um lado essa união durou pouco, existe um outro tipo de união que já dura quinze anos para Ndiaye: seu filho, Basirou, que vive no Senegal. “Eu falo com ele todos os dias.” E narra para Basirou as caraterísticas da cidade, o Parque dos Macaquinhos, a Avenida Júlio, o Juventude e a SER Caxias.

Pelo celular, Ndiaye conta para Basirou também sobre o Fogo de Chão e o Clube do Gaúcho, locais que ele já frequentou, tentando até mesmo dar uns passinhos de dança regional. “Mas eu não sei nada do gaúcho, só conheço o churrasco, que é muito bom”, diz, sorri e fica meio encabulado, aquela encabulação de quem é humilde e bom de espírito, de quem, por conta da religião muçulmana, não bebe álcool e jamais desrespeita os outros.

o sonho, o destino

Ainda lá na infância em Dakar, entre chute-passe e braçada-mergulho, o sonho de Ndiaye era comprar uma casa para os pais, dar-lhes conforto. Não foi possível, devido à privação financeira e às mortes prematuras dos seus. Era como se, de repente, ao fim de mais um dia quente nas regiões periféricas de Dakar, o adolescente Ndiaye enfim percebesse que sonho por sonho não garantia nada, não assegurava nada.

Mas nem por isso ele deixou de visualizar objetivos novos para sua vida. “A gente nunca sabe o que vai acontecer”, diz. E confessa que seria bom se encontrasse outra companheira, uma pessoa com quem pudesse dividir os ricos e os pobres momentos, as confianças e as dúvidas, a idade e o tempo, alguém que segurasse firme a mão de Ndiaye e ouvisse com carinho as suas histórias sobre o mundo, o Senegal, o destino.


*matéria 12

 

O universo escultórico 

de Ale Amorin

Nos fundos de uma casa do bairro Lourdes, escultor caxiense produz obras que são referência internacional



Conforme o evangelho dos escultores, um dia antes de criar Adão, Deus pediu a Ale Amorin opiniões sobre a confecção do crânio: formato, tamanho, textura. Simplesmente porque crânios são uma das obsessões do caxiense de 49 anos. Mas uma obsessão escultórica que chegou aos poucos, respeitando a hierarquia das influências antes de esculpir, Ale Amorin ouviu música, cortou cabelo, desenhou e tatuou muito.  

Essas referências de arte criaram nele um repertório alargado. Criaram um modo de olhar. Um modo de reproduzir de maneira artística o anatômico, o orgânico, o núcleo que constitui o que de fato somos. E o que somos é carne, é sangue, é nervo, é osso — assim como também somos decomposição gradativa, crânios revestidos de cabelo e pele. Esse entendimento Ale Amorin tem há tempos.

tattoo, seletividade

Em 1991, Ale Amorin saiu em busca de estudos e de instrumentos para tattoo. “Fui fazendo o melhor que eu podia, apesar das limitações daqui.” Até que, em 1992, ele descobriu que nos EUA e na Europa havia convenções de tatuadores, locais onde seria possível interagir com os seus heróis: Paul Booth, Filip Leu, Guy Aitchison e Tin Tin. Nascia ali um intercâmbio de metodologias, que em certa época fez com que o caxiense tivesse a maior distribuidora de materiais tatuatórios do Brasil.

Ele explica que, em termos de estilo, há vários tipos de tatuadores. “Uma marca registrada minha era o trabalho preto e sombra, além do orgânico”, diz, a voz num tom ameno, sossegado. O seu estúdio de tattoo em Caxias funcionou por cerca de quinze anos. Aos poucos, houve a troca da quantidade pelo tatuar seletivo, fazendo com que o ofício se tornasse para ele uma espécie de ritual esporádico, restringido só a amigos e fãs. “Ainda conservo um estúdio privado em casa.”

Kiss, estética

A banda norte-americana Kiss tem um papel central na vida de Ale Amorin. “Já fui a uns vinte shows dos caras.” Tanto que, durante os anos em que tatuou de maneira constante, ele costumava deixar um CD do Kiss tocando ao fundo em volume nem sempre tão baixo. Para gerar atmosfera. Para gerar uma conexão com o mundo hipervisual da banda, uma hipervisualidade que fascinou Ale Amorin desde os catorze anos.

“Mas o que eu curti primeiro foi o som deles. O gosto pela estética visual veio depois.” E essa estética influenciou bastante as esculturas dele, já que a banda Kiss é conhecida pelas maquiagens efusivas, pelo uso cênico do fogo, pelas representações de jorramento de sangue nos shows. “De uma forma meio romântica, isso tudo acaba aparecendo nas minhas esculturas, está presente nos crânios e nas decomposições.”

raízes, fascínios

Ale Amorin conta que, embora tenha começado a esculpir tarde, a atração pela escultura é anterior a tudo. Durante a infância, por exemplo, quando ia ao centro de Caxias, ele sempre queria fazer uma parada numa casa de artigos para Umbanda. “Na entrada havia uma preta e um preto-velho sentados, os quais, em minha mente infantil, me impunham um respeito que eu não tinha nem por pessoas de verdade.”

As primeiras esculturas dele surgiram em 2006, mas foi só em 2011 que Ale Amorin iniciou sua carreira como escultor profissional. Sua escola escultórica é a cerâmica. “O timing da argila, as formas de queima, os revestimentos e todo o processo envolvido me fascinavam.” E fascinados também ficam os entregadores de matéria-prima quando entram na sala de crânios, para soltar os sacos de talco industrial. “As reações são engraçadas.”

fronteiras, God of Thunder

Em 2018, Ale Amorin publicou, via Financiarte, o livro imagético Esculturas (Editora São Miguel, 258 páginas), cujo miolo apresenta as peças que o escultor criou entre 2012 e 2018. Peças que foram vendidas para todo o Brasil, assim como para os EUA, Portugal, França, Holanda, Suíça, países da Ásia e também aqui da América Latina. São fronteiras que se expandem.

Como se expande a música God of Thunder, do Kiss, enquanto o escultor aquece os dedos para refinar um de seus trabalhos — talvez um retrabalho no crânio de Adão, o crânio pioneiro, a obra que deixou inclusive Deus em dúvida, o crânio matriz em cuja mandíbula de cerâmica ainda é possível ver uma etiqueta meio  apagada pelo fogo bíblico: Ale Amorin, bairro Lourdes, Caxias do Sul-RS. 


sábado, 4 de julho de 2020

*matéria 11


Nelfy abraça os recomeços

Os descaminhos e os cachorros-quentes da colombiana de Miranda


Se a Netflix descobrisse a história de Nelfy Vargas, talvez a transformasse em sua nova série. Roteiro não faltaria. Drama latino-americano não faltaria. Essa afetuosa colombiana de 50 anos há 16 no Brasil veio para Caxias do Sul em busca de um recomeço, de uma reinvenção identitária. Isso porque alguns trechos do passado dela se tornaram pesados demais, roteirizados demais, como se o excesso de reviravoltas tivesse esgotado o olhar de Nelfy.
Eis aí algo em comum entre a Colômbia e o Brasil: embora sejam países ricos de culturas e de paisagens, ambos possuem algumas facetas menos simpáticas. Facetas atravessadas pela violência, pelo mercado oculto, pelos jogos de poder que muitas vezes causam danos colaterais. É por isso que não há novidade no fato de que colombianos e brasileiros, de uma hora para outra, correm o risco de ser golpeados pelo destino. Nelfy foi golpeada quatro vezes.
Maria e José
Existe uma coincidência de nomes. E de tragédias. A Bíblia relata em seus evangelhos que o filho de Maria e José foi brutalmente assassinado. Já na Colômbia dos anos 1990 os assassinados foram Maria e José, os pais de Nelfy pais que estavam inseridos na política local. Chamavam-se Maria Dalis Campo e José Vargas, nomes que há três décadas vivem na lembrança, na interioridade de Nelfy.
Por cinco segundos, a voz dela hesita em continuar. São 13h40 de terça-feira e, na esquina da Avenida Júlio com a Feijó Júnior, o barulho reincidente do trânsito está preenchendo o silêncio de Nelfy. Não há insistência para que ela continue a falar, mas assim mesmo surge o dado faltante: na Colômbia, além dos pais de Nelfy, um dos irmãos e o primeiro marido dela também foram assassinados.
cachorro-quente, interculturalidade
Quando atende clientes caxienses, Nelfy usa uma linguagem meio híbrida, rica, com um pouco de espanhol encaixado nas frestas do português. O interessante é que às vezes a barraquinha dela se transforma num ponto de encontro para os colombianos que vivem aqui, o que faz surgir uma atmosfera cheia de interculturalidade, de narrativas estrangeiras tudo isso ao lado da simpatia de Nelfy, da atitude convidativa dela, tornando a colombiana uma anfitriã que sabe servir e agradar.
Roosevelt, Miranda
Nos anos 1930, Roosevelt foi o 32º presidente dos EUA. Hoje, é o atual marido de Nelfy. “Ele é brasileiro, de Belém do Pará”, ela diz. E deixa que os olhos brilhem forte ao descrever Roosevelt: “É meu companheiro, meu amigo, meu amor, minha tranquilidade”. Junto com eles, em Caxias, vivem os dois filhos de Nelfy, Cristian e Mairon — um trabalha numa churrascaria, já o outro lida com descarga de caminhões e estoque de mercadorias.
Nelfy conta que tenta visitar a Colômbia a cada quatro anos, para rever parentes e lugares. Sua cidade natal se chama Miranda e está localizada no Departamento de Cauca. É uma localidade pequena — Nelfy supõe que uns 25 mil colombianos talvez vivam lá hoje. Conforme a narração dela, a infância em Miranda foi divertida e girou em torno de subidas em árvores e degustações de frutas. “Algumas frutas que a gente tem lá eu nunca achei por aqui”, diz e abre um sorriso bilíngue.
entrosamento, salmo 91
Como todo mundo sabe, o entrosamento entre Brasil e Colômbia cresceu muito em 2016, quando o voo da Chapecoense caiu em solo colombiano, próximo a Medellín. Nelfy comenta que, se por um lado foi uma perda difícil para as famílias envolvidas, por outro lado ela percebeu uma aproximação carinhosa entre os países, como se brasileiros e colombianos tivessem se tornado irmãos, cúmplices na dor.
Dor. Perda. Descaminho. Situações de vida que Nelfy conheceu nos anos 1990 na Colômbia. E que a aproximaram do salmo 91, o preferido dela, cujo quinto versículo é direto: “Não temerás os terrores da noite, nem a seta que voa de dia”. Até porque de dia Nelfy permanece focada no cachorro-quente mais multicultural de Caxias do Sul. “Às vezes chego a vender 30 no mesmo expediente”, ela diz, abraçando a si mesma, abraçando aqueles quatro familiares que — embora apenas lembranças — ainda a acompanham de perto.

*matéria 10


André e seus plurais

A versatilidade do trabalhador mais sorridente da Av. Júlio


Não é figura de linguagem: André Ribeiro da Luz, 55, tem quatro mãos. Suas mãos extras são amadeiradas e foram construídas por ele mesmo, “já estão na sexta geração”. As gerações anteriores das mãos extras de André eram mais pesadas, mais ásperas, características que o estimularam, feito um geneticista, a sofisticar o próprio corpo. A única limitação dessas mãos complementares é que elas possuem apenas um dedo, o indicador — mas nada que atrapalhe a sua função, que é ficar apontando para a Periquito da Sorte Loterias.
A Periquito da Sorte foi sortuda em achar alguém como André, cujas tarefas na lotérica transitam por no mínimo cinco frentes: propagandista, recepcionista, segurança, designer e organizador de filas. Ele é o faz-quase-tudo, o joker do baralho, uma polivalência que André sempre exerce com desvelo e cortesia, com proatividade e delicadeza, traços de caráter que ele teve o cuidado de transmitir também aos quatro filhos Lucas, Gabriel, Narayna e Miguel.

a casa, a voz

André é caxiense e nasceu em casa, no número 65 da Borges. Nascer em casa deve ter feito com que ele se sentisse à vontade consigo desde o primeiro minuto: a familiaridade, o pão caseiro, os rostos domésticos. O inusitado é que o nascimento caiu em 31 de março de 65, exatamente um ano após o golpe militar no Brasil, como se o menino André tivesse sido enviado para mostrar que a truculência precisava ceder espaço à gentileza.
André é gentil. E possui uma fala cadenciada. Sua alocução tem a feitiçaria de atrair os pedestres da Av. Júlio e da galeria JC. “Loterias é logo ali, logo ali, logo ali”, ele entoa, sem exagerar na entoação. A parte divertida é que, segundo o testemunho e a piscada de olho de André, as Lojas Colombo “pegaram de empréstimo” essa marchinha do “logo ali”. Marchinha que foi aproveitada também pelo carnaval de Caxias, pois de repente surgiu aqui uma festa chamada “O carnaval é logo ali”. Ou seja, André é compositor, ainda que lhe falte copyright ©.

o monge


Existe um ponto-chave no passado de André. Em 1983, o ano da guinada, ele sentiu a necessidade de virar monge. É fácil visualizá-lo... Os mantras, a fumaça espiralada dos incensos, a raspagem do cabelo, a indumentária açafranada. É fácil visualizar o seu sorriso ao mesmo tempo alegre e triste: alegre devido aos encontros semanais com a iluminação, triste devido à consciência do mal onipresente que se alastrava pelo mundo.
Época em que ele escutou uma conversa reveladora-meio-profética entre um padre e o Mestre Prabhupada, o que fez com que André não perdesse tempo e fundasse para si uma aura de tranquilidade, de comunhão com o humanismo. A juventude e as emoções dele no trabalho íntimo da garimpagem de referências, garimpagem de novos pontos de vista buscas que todos nós (comunistas ou fascistas, Sargentos Garcia ou Zorros) jamais cessaremos de fazer.
a capital, o interior

André se experimentou em Porto Alegre por vinte anos. Foi vendedor na Rua da Praia e depois abriu um restaurante indiano no Bom Fim, Rua Tomaz Flores. Fez ainda bicos de figurante em pelo menos duas ocasiões. 1) Na metade dos anos 80, dá para vê-lo numa das gravações de fim de ano da Rede Globo, as mãos dele no gingado da música. 2) É possível também avistar André num dos videoclipes da banda Graforréia Xilarmônica, ele aparece de relance atrás de um anão, “eu pesava 108 kg naqueles dias”.
De volta a Caxias, logo em frente ao seu atual local profissional, André vendeu incensos e itens xamânicos durante muito tempo. “O problema foi que no governo Guerra a gente não conseguiu mais vender ali, por causa duma reforma no prédio.” Eis então que a Periquito da Sorte Loterias teve a presença de espírito de contratar André, que há três anos está ali com as suas quatro mãos, o trabalhador com o maior número de sorrisos por minuto da Av. Júlio.

o Bhagavad-Gita, a luz

O texto Bhagavad-Gita tem a ver com os hindus, com Krishna, com a sublime canção. E tem a ver com André, que busca nessa leitura o aprofundamento das sensibilidades, o avanço irreversível do eu. Um eu que talvez a Periquito da Sorte Loterias não tenha a sorte de conhecer por completo. Um eu que, ao longo das horas vagas e das eventuais insônias, permanece focado na autoinstrução sobre a sociedade, sobre o homem, sobre a história do mundo. Um eu que, além das quatro mãos trabalhadoras, possui no próprio nome quatro pontos intensos de luminosidade: André Ribeiro da Luz.

terça-feira, 31 de março de 2020

*matéria 9


Mayron e Bianca: os sem-teto nos tempos do corona

Casal morador de rua recebe abrigo nos Pavilhões da Festa da Uva, protagonizando metáfora viva a livro de García Márquez


                                             

        Mayron e Bianca não leram O Amor nos Tempos do Cólera, de García Márquez. Mas são os protagonistas de O Amor nos Tempos do Corona. “Parece mesmo uma história de livro”, diz Mayron Soares dos Santos, 27, “porque esse vírus tirou a gente da rua”. Tanto ele quanto ela percebem a demão de ironia, o inusitado do contexto: um vírus oferecendo a uma parcela de moradores de rua a possibilidade temporária de um teto fixo, 24h, sete dias por semana.

Semana em que Bianca Pereira Macedo, 22, sente-se muito feliz ao lado de Mayron, o que não deixa de combinar com a página 97 do livro de García Márquez: “O amor correspondido lhe havia dado uma segurança e uma força que não conhecera antes”. Segurança e força que fizeram com que Bianca, na saúde e na doença, no fechado e no aberto, escolhesse Mayron para ser o pai de seu filho.

 

o pequeno, o aviso

 

O pequeno Miguel Djiovanny tem apenas três meses. “É nome italiano”, diz Bianca. Quis o vento do calendário que Miguel nascesse em 25 de dezembro, feito um menino Jesus sem endereço próprio para nascer porém um menino Jesus que, diferente do original, não conseguirá multiplicar o pão tão facilmente assim. E que hoje seria julgado se bebesse o vinho sagrado, já que a maior parte dos cidadãos (com teto) defende que os sem-teto não deveriam consumir álcool.

Miguel Djiovanny não está com os pais no refúgio provisório dos Pavilhões da Festa da Uva. “O juiz não deu permissão”, diz Mayron. Pai e mãe estão cientes de que é melhor assim, é mais seguro esperar um pouco até pegar o filho de volta. Durante este recolhimento quase mundial, o pequeno foi acolhido por um abrigo aqui de Caxias do Sul. “Eu prefiro que tu não bote o nome do abrigo”, Bianca avisa, serena, uma voz firme que dispensa de Mayron a tarefa de reforçar o aviso.  

 

a desintoxicação, a tatuagem

 

Além de evitar o contágio do coronavírus, o período transitório nos Pavilhões da Festa da Uva está servindo para que Mayron e Bianca larguem as drogas. “A gente quer se livrar de uma vez do crack”, ela diz. E menciona com um orgulho apertado que, ao longo da gestação de Miguel Djiovanny, conseguiu ficar sete meses longe do cachimbo, do bombril e da tulipa. “É difícil, mas a gente tá indo bem.”

Bianca não oculta que já passou um tempo presa. Naquele outro tipo de quarentena, quando era possível, ela tatuava outras detentas, arte que captou do pai. “Eu era adolescente e treinava num pedaço de couro, criando um monte de desenho.” Pelas contas dela, fez 63 tatuagens (sem cobrar) enquanto esteve detida, usando caneta, agulha e “aquela maquininha”. O curioso é que, embora tatuadora, Bianca jamais foi tatuada.

 

a faxina, o alheamento

 

Cerca de 100 moradores de rua estão hoje nos Pavilhões da Festa da Uva, divididos em alas subjetivas e alegres. Seus quadrados respeitam um intervalo conveniente entre um e outro, deixando que o ar circule. No beco 01, batizado de “Os favelas”, Bianca faz um sinal decidido para Mayron, um sinal de que, antes da foto no quarto deles, ela quer fazer uma faxina relâmpago no ambiente, quer alinhar o criado-mudo improvisado e esticar o lençol branco-florido.

A vontade dela é satisfeita e, nesse meio-tempo, vem à tona que alguns dos sem-teto ao redor estão alheios ao novo vírus, alheios à inesperada rixa entre saúde e economia. “Tem muitos aqui que se acomodaram e não querem nem saber”, diz Mayron, meio envergonhado, sem desconfiar de que no Brasil inteiro vários moradores de condomínio também se acomodaram e não querem nem saber.

 

o pescador de ilusões, a plateia

 

Na mesa de lanches, às 10h28, Mayron interrompe o sanduíche para cantar e tocar “Pescador de ilusões”, da banda O Rappa. Sua voz se intensifica conforme exige a letra, conforme exigem também seus próprios sentimentos, sua própria exigência de expressão — que se desenvolveu via autodidatismo, sem aulas particulares, sem paredes limitadoras e tetos de gesso que sempre acabam encaixotando o som.

Com timidez, sozinha na plateia da mesa, Bianca mexe os lábios e acompanha a música do namorado. A atenção só para Mayron, os olhos dela como que projetando o futuro pós-corona ao lado do pescador de ilusões e do filho deles. Os braços de Bianca apoiados na mesa dos Pavilhões da Festa da Uva, março de 2020, o mês em que os sem-teto de todo o Brasil ganharam um teto pelos motivos errados.


terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

*conto 1

meu conto faz parte do livro Não Culpe o Narrador (Porto Alegre: Class, 2018), coletânea organizada por Ana Luiza Rizzo e Irka Barrios.

Aquele risco violeta, meio roxo
                                
A África é a estreia 
do Homo Sapiens. 
(cartaz num poste 
de Joal-Fadiout)

a.

Em maio agora faz três anos que estamos aqui no Brasil, mas a sensação em nós é de mais tempo. Nossa cidade lá no Senegal se chama Joal-Fadiout. O fato curioso é que esse tracinho no meio de Joal-Fadiout é uma ponte de verdade. Joal fica na extensão do continente, enquanto Fadiout forma uma ilha cheia de telhados beges e cinzas. Mais ou menos 45 mil habitantes. O primeiro presidente do Senegal nasceu lá.

Três anos no Brasil e ainda não conseguimos aprender bem o português. Até porque Malick, Ousmane, Faraji e eu temos o hábito de conversar só com outros imigrantes senegaleses, como se continuássemos vivendo em Joal-Fadiout. É por isso que as palavras que estão aqui foram originalmente escritas em francês seria difícil escrevermos com naturalidade na língua do Brasil. O que fizemos foi procurar uma escola de idiomas e dizer que precisávamos de um tradutor. Escola Instituto Roche, na Ramiro Barcelos. Explicamos a ideia do nosso texto, o convite da Ana Luiza, a inesperada chance de participarmos de uma coletânea de contos.

 

b.

Moramos num apartamento de dois quartos na zona norte de Porto Alegre, bairro Passo D'Areia. O destino inicial era Caxias do Sul, mas acabamos trocando na última hora essa passagem sozinha daria um livro. No geral, as pessoas olham para nós e acham que a única coisa que sabemos fazer é comercializar itens na rua. Lenços. Malhas. Panos de prato. E temos certeza que algumas pensam que somos analfabetos, já que gaguejamos no português.

Lá no Senegal existem vários dialetos. O principal é o wolof, que prevalece na televisão e no rádio, dominando inclusive a capital Dakar. A sonoridade do wolof é bonita. Jërëjëf significa “obrigado”. Taalata é “terça-feira”. As línguas árabe e francesa também fazem parte do nosso cotidiano: tanto na oralidade quanto na escrita. Somos alfabetizados. 

          

c.

Malick é o único de nós quatro que já morou na Europa. Itália. Primeiro em Nápoles (oito meses) e depois Verona (um ano). Como não podia trabalhar legalmente no setor de telefonia, que é sua especialidade desde sempre, começou a vender souvenir ao redor de pontos turísticos. Malick ficou bastante conhecido na cidade de Verona pelo menos entre a comunidade senegalesa que vive lá. Isso porque em certo momento Malick teve a cara de pau negra de querer algo diferente. É famosa a história de quando ele (aos 27 anos) quis fazer um teste no time de futebol chamado Hellas Verona. Imagina só, um time profissional que disputava a primeira divisão do campeonato italiano. Que sonho. Claro que os italianos não deixaram Malick entrar em nenhum treino. 

Mas ele entrou sim para a lista de fofocas senegalesas em Verona. A notícia se espalhou entre os nossos como pó na ventania. Malick, o jogador. Malick, o injustiçado. Existe até uma foto de celular do instante exato em que ele, após ter sido barrado na secretaria do estádio, deu as costas e voltou cabisbaixo ao realismo da vida não sabemos em qual celular ficou armazenada essa foto. A verdade é que o futebol ocupa um lugar respeitado e até meio místico dentro de nós quatro.

 

d.   

Daqui um mês e pouco vai começar a Copa do Mundo 2018 na Rússia. A seleção do Senegal está dentro (Malick queria muito o Senegal no grupo da Itália, só que a Itália não conseguiu vaga na Copa, que pena). Fazendo uma conta nos dedos, é bem provável que, no dia em que este texto estiver enfim traduzido e for publicado, já saberemos qual seleção conquistou o título ou talvez por sorte a publicação saia ainda durante os jogos, quando as chances de todos os países continuarem vivas. No fundo, não temos a esperança tola de vencer a Copa. Esperança é um sentimento que hoje em dia nutrimos só em relação aos assuntos pessoais, em relação a nossa própria caminhada. Embora nós quatro torçamos bastante pela seleção do Senegal, torcemos mais forte por nós mesmos, já que temos nossas Copas do Mundo particulares aqui no Brasil.   

Mas é óbvio que seria lindo se nosso país levantasse o troféu máximo do futebol. A primeira seleção africana campeã do mundo, que rótulo para a sociedade senegalesa. O intrigante é que não conseguimos imaginar quais seriam as consequências imediatas dessa conquista. Será que o Senegal começaria a receber atenções e investimento estrangeiro, uma multinacional, um escritório da ONU? Será que a República do Senegal passaria a ser estudada nas salas de aula dos Estados Unidos?

 

e.

Malick, Ousmane, Faraji e eu não somos irmãos nem primos. Crescemos próximos uns dos outros em Joal-Fadiout. Tão próximos que às vezes dava para escutar em uníssono o que acontecia nas quatro moradias os sons da vida africana, para o bem e para o mal. O que temos em comum é que os pais de cada um de nós se casaram com mais de uma mulher. Traço étnico da nossa terra. Por exemplo, o pai de Ousmane tem três esposas, todas vivendo na mesma casa de telhado bege na ilha de Fadiout. Sempre que Ousmane tenta explicar para os brasileiros essa característica senegalesa, ele é interpretado de modo errado. E escuta piadas fora de contexto.  

Aqui no Brasil não pensamos muito em casar, pelo menos não agora, talvez no futuro. O que pouca gente conhece é que, para um senegalês poder oficializar o matrimônio, os pais do noivo e da noiva precisam aprovar a união e dar o ok final para nós é importante o consenso da família. Em Porto Alegre sabemos de alguns senegaleses que já estão casados com mulheres brasileiras. Tendo adquirido até casa própria e carro e tudo mais. Isso é bom para toda comunidade de imigrantes africanos, uma vez que ajuda a diminuir o preconceito contra nós. A África sofre preconceito.

 

f. 

O Brasil é um país que manteve a escravidão de negros por mais de 300 anos. Nós lemos sobre isso na internet. E a totalidade dos escravos que foram trazidos para cá partiram da costa oeste africana. O Senegal fica na costa oeste africana. Pensando agora a respeito do que aconteceu na vida dos nossos antepassados, sentimos uma mistura de tristeza e desencanto. Mas não raiva. Nem aversão de quem os escravizou — tanto que escolhemos viver aqui no Brasil, no país que violou nossos ancestrais africanos por mais de 300 anos. Não sentimos nem raiva nem aversão porque sabemos que a conjuntura mundial era diferente. 

Cerca de vinte dias atrás, ali numa das laterais da rodoviária, um homem branco se postou em nossa frente e, com rinchos e ulos, começou a fazer uma paródia grosseira do dialeto senegalês que usamos entre nós. Foi uma provocação em tom de zombaria, algo hostil e desrespeitoso, como se fôssemos seres monossilábicos recém-saídos da savana. É um exemplo do preconceito que às vezes sofremos aqui em Porto Alegre, preconceito de um grupo de pessoas que nos julgam analfabetos. Mas a verdade é que não temos ressentimento, não nos incomodamos com o fato de nos classificarem como homens sem letras. Se quiséssemos, poderíamos escrever sobre a escravidão em francês, em árabe, em dialetos africanos e (alguns de nós) inclusive em inglês.

 

g.

Faraji está saindo com uma mulher porto-alegrense. Não chega a ser namoro, ele diz. Estão se conhecendo aos poucos. A parte engraçada (engraçada para nós homens senegaleses) é que, durante o primeiro encontro deles, essa mulher levou Faraji de carro para um quarto que tinha cinco espelhos, banheira de hidromassagem e um teto que abria com controle remoto. Sem falar na cama redonda de lençol vermelho-sangue, que fez Faraji se descobrir um personagem de As mil e uma noites.

Logo que chegamos ao Brasil em 2015, a primeira coisa que estranhamos foi enxergar casais de namorados se beijando em espaços públicos. Beijo de língua, sem constrangimento. Em praças, shopping centers, no Parque da Redenção e na Usina do Gasômetro. Essa troca de intimidade nos ambientes coletivos é impossível de acontecer lá no Senegal não que seja certo ou errado, é apenas uma diferença cultural. Somos mais discretos, quem sabe por causa da nossa herança servil.

Nós quatro já lemos As mil e uma noites. Não é uma história de origem africana. Ela vem de lendas árabes, indianas e persas. No enredo, o rei Xariar é traído pela sua primeira esposa e, a partir dessa traição, a trama do livro ganha desenvolvimento recomendamos a leitura. O que nosso amigo Faraji nos contou foi que, naquela noite com a mulher porto-alegrense, quando ele estava à vontade na cama redonda de lençol vermelho-sangue, não parou de pensar na traição da primeira esposa do rei de As mil e uma noites. Não parou de pensar que a esposa do rei cometera adultério justamente com um escravo. Um escravo.

 

h.

No dia em que recebemos o convite da Ana Luiza para escrevermos estas linhas, estávamos perto do viaduto da Borges. Era uma sexta de céu fechado, logo após a hora do almoço. Ainda não tínhamos vendido nada à tarde. Foi quando ela apareceu do lado direito (não a conhecíamos) e escolheu três pares de meias coloridas, de lã, totalizando R$ 15. Havia educação e afetuosidade no jeito dela, como se fosse alguém do serviço de proteção aos imigrantes. Malick fez a cobrança e pediu se a cliente não tinha uma nota menor as notas de R$ 50 sempre complicaram nosso troco. Para surpresa de nós quatro, a cliente se apresentou e disse que podíamos ficar com a quantia que havia sobrado. Malick, em dúvida, virou-se para o resto de nós com olhos de impasse. Mas demos consentimento, balançando positivamente nossas cabeças. Então Ana Luiza nos explicou os detalhes do seu projeto. “Uma coletânea de contos sobre os países que vão jogar a Copa do Mundo na Rússia, vocês querem escrever sobre o Senegal?” É impossível dizer se ela fez o convite na intuição ou se já estava com o plano pronto na cabeça. “Essa é uma iniciativa dos alunos do escritor Assis Brasil”, Ana Luiza completou. Não fazíamos ideia de quem era Assis Brasil, mas pelo sobrenome nacional só podia ser alguém importante para o país. “Aceitamos”, dissemos no nosso português possível, sentindo no sangue uma fusão de felicidade e desafio. Existem pessoas que sabem que somos alfabetizados.

 

i.

Malick, Ousmane, Faraji e eu gostamos de dizer que o futebol ocupa um lugar meio místico dentro de nós, dentro da nossa percepção de identidade. Mas não tem nada a ver com a Copa do Mundo 2018 na Rússia é algo mais primário do que isso, mais íntimo. Ao longo da nossa infância/adolescência em Joal-Fadiout, o futebol foi para nós uma espécie de capacitação de sentimentos, capacitação para tudo o que encontraríamos em nossas futuras vidas de homens feitos.

Receio, atrevimento, susto, improviso, desespero, paixão, covardia, ímpeto, risco, derrota, fé, inevitabilidade. Tudo isso o futebol trabalhou devagar em nossa índole, lance a lance, partida a partida. Lembramos com carinho de certas passagens. Por exemplo, lá em Joal-Fadiout existe um cemitério misto que abriga em harmonia tanto muçulmanos quanto cristãos, Cimetiere Mixte Musulman Chretien. De acordo com nosso julgamento inocente de crianças-negras-de-pés-descalços, o cemitério era o lugar para onde iam os muçulmanos e os cristãos que eram derrotados nas partidas de futebol. 

Mas não tirávamos isso da nossa criatividade. Havia mitos, folclore, deboche por parte dos mais velhos. Ouvíamos essas ruminações como se estivéssemos diante de palestras sagradas era tudo o que tínhamos ao alcance do imaginário. Pescadores idosos nos reuniam em semicírculo e divulgavam narrativas cheias de fatalidade e drama, de ameaça e profecia. Que época. Olhávamos para as cruzes brancas do cemitério de Joal-Fadiout e aprendíamos cedo sobre as duplicidades da existência senegalesa. Vida e morte. Sorte e azar. Mar e terra. Cristãos e muçulmanos. Mirávamos os rostos afros dos pescadores idosos e, do nosso jeito ainda ingênuo, interpretávamos os ciclos da Mãe África, os ciclos de um povo que nunca teve muita manobra de escolha.

E, em nossos corpos magros de meninos, a ideia chamativa do futebol como pano de fundo para as realidades e irrealidades africanas. Muito varal em nosso entorno. Muita concha de molusco. Muito cheiro de pescado. Acácias, manguezais, baobás. As nuvens carregadas em julho e agosto, as variações sazonais. Pelicanos, hienas, gaivotas. Os ventos do norte e do oeste. Inventávamos campeonatos e ligas regionais, times e divisões. Muito céu em cima. Muito mar ao lado. Muita piroga ancorada esperando pela nova travessia. Cerâmica, turbantes, vestidos estampados. O mercado de peixe e a zona de secagem na parte oriental. Jogávamos nosso futebol cercados pela vida conhecida de Joal-Fadiout, sem desejarmos os ares de outras terras, os portos de homens brancos.  

As partidas às vezes contavam com times cheios, um excesso ruidoso de crianças. Mas em outros momentos éramos obrigados a improvisar jogos de dois contra dois, um contra um. E nessas horas fazíamos uso de nossa fabulação, enxergando torcedores onde só existiam varais com mangas ao vento, enxergando rede de gol onde só havia rede de pesca, enxergando árbitros e técnicos e preparadores físicos onde só havia pescadores hipnotizados pela sua própria subsistência.

         Três anos vivendo no Brasil e já não podemos dizer que continuamos os mesmos quem pode? As circunstâncias brasileiras modificaram nós quatro, sem que no início percebêssemos. Mas ainda que tenhamos incorporado certos hábitos aqui de Porto Alegre, o sentimento em nós é de que nossa africanidade se tornou mais forte, mais autoconsciente. É difícil explicar direito essa impressão. Às vezes observamos o mapa-múndi e é como se o continente africano nos saltasse aos olhos feito um leão insaciável. Nessas ocasiões, o território costeiro do Senegal também adquire uma dimensão bem maior. De área e de significados.

         Talvez soe bobo de nossa parte: o futebol que hoje em dia jogamos ali na margem do Rio Guaíba torna mais viva a noção que temos de nós mesmos. Nos domingos à tarde em que não está chovendo, saímos da zona norte e vamos até a Avenida Beira-Rio, ansiosos por espaço nas partidas improvisadas que acontecem num campo colado ao rio — campinho de terra, sem linha de marcação nas laterais. Noventa por cento de quem joga ali são brasileiros, claro, e além de nós senegaleses também participam alguns haitianos e até um cidadão sírio. Quase uma Copa do Mundo à parte.

         Talvez soe mais bobo ainda: sempre que entramos em campo aqui em Porto Alegre, nós quatro nos cumprimentamos do mesmo jeito que fazíamos antes das partidas de infância em Joal-Fadiout. É uma ritualização antiga que agora (tão longe que estamos da África) imprime em nós um valor diferente, que tem a ver com quem somos, com quem imaginamos ser. A bola dominada em nossos negros pés senegaleses. Muito varal em nosso entorno. Muita concha de molusco. Muito cheiro de pescado. Acácias, manguezais, baobás. E no fim das tardes de domingo, quando a partida ali na margem do Rio Guaíba está terminando, nós gostamos de ver surgir no horizonte aquele risco violeta, meio roxo, que os porto-alegrenses dizem ser o pôr do sol mais bonito do mundo. Cerâmica, turbantes, vestidos estampados. As variações sazonais. O mercado de peixe e a zona de secagem na parte oriental. Muito céu em cima. Muita água ao lado. Muita piroga ancorada esperando pela nova travessia. Todo conjunto de nossas realidades e irrealidades africanas. 


        
a quem interessar possa: entrevista sobre o livro Não Culpe o Narrador
https://www.youtube.com/watch?v=vFU2JzAX4GI