terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

*conto 1

meu conto faz parte do livro Não Culpe o Narrador (Porto Alegre: Class, 2018), coletânea organizada por Ana Luiza Rizzo e Irka Barrios.

Aquele risco violeta, meio roxo
                                
A África é a estreia 
do Homo Sapiens. 
(cartaz num poste 
de Joal-Fadiout)

a.

Em maio agora faz três anos que estamos aqui no Brasil, mas a sensação em nós é de mais tempo. Nossa cidade lá no Senegal se chama Joal-Fadiout. O fato curioso é que esse tracinho no meio de Joal-Fadiout é uma ponte de verdade. Joal fica na extensão do continente, enquanto Fadiout forma uma ilha cheia de telhados beges e cinzas. Mais ou menos 45 mil habitantes. O primeiro presidente do Senegal nasceu lá.

Três anos no Brasil e ainda não conseguimos aprender bem o português. Até porque Malick, Ousmane, Faraji e eu temos o hábito de conversar só com outros imigrantes senegaleses, como se continuássemos vivendo em Joal-Fadiout. É por isso que as palavras que estão aqui foram originalmente escritas em francês seria difícil escrevermos com naturalidade na língua do Brasil. O que fizemos foi procurar uma escola de idiomas e dizer que precisávamos de um tradutor. Escola Instituto Roche, na Ramiro Barcelos. Explicamos a ideia do nosso texto, o convite da Ana Luiza, a inesperada chance de participarmos de uma coletânea de contos.

 

b.

Moramos num apartamento de dois quartos na zona norte de Porto Alegre, bairro Passo D'Areia. O destino inicial era Caxias do Sul, mas acabamos trocando na última hora essa passagem sozinha daria um livro. No geral, as pessoas olham para nós e acham que a única coisa que sabemos fazer é comercializar itens na rua. Lenços. Malhas. Panos de prato. E temos certeza que algumas pensam que somos analfabetos, já que gaguejamos no português.

Lá no Senegal existem vários dialetos. O principal é o wolof, que prevalece na televisão e no rádio, dominando inclusive a capital Dakar. A sonoridade do wolof é bonita. Jërëjëf significa “obrigado”. Taalata é “terça-feira”. As línguas árabe e francesa também fazem parte do nosso cotidiano: tanto na oralidade quanto na escrita. Somos alfabetizados. 

          

c.

Malick é o único de nós quatro que já morou na Europa. Itália. Primeiro em Nápoles (oito meses) e depois Verona (um ano). Como não podia trabalhar legalmente no setor de telefonia, que é sua especialidade desde sempre, começou a vender souvenir ao redor de pontos turísticos. Malick ficou bastante conhecido na cidade de Verona pelo menos entre a comunidade senegalesa que vive lá. Isso porque em certo momento Malick teve a cara de pau negra de querer algo diferente. É famosa a história de quando ele (aos 27 anos) quis fazer um teste no time de futebol chamado Hellas Verona. Imagina só, um time profissional que disputava a primeira divisão do campeonato italiano. Que sonho. Claro que os italianos não deixaram Malick entrar em nenhum treino. 

Mas ele entrou sim para a lista de fofocas senegalesas em Verona. A notícia se espalhou entre os nossos como pó na ventania. Malick, o jogador. Malick, o injustiçado. Existe até uma foto de celular do instante exato em que ele, após ter sido barrado na secretaria do estádio, deu as costas e voltou cabisbaixo ao realismo da vida não sabemos em qual celular ficou armazenada essa foto. A verdade é que o futebol ocupa um lugar respeitado e até meio místico dentro de nós quatro.

 

d.   

Daqui um mês e pouco vai começar a Copa do Mundo 2018 na Rússia. A seleção do Senegal está dentro (Malick queria muito o Senegal no grupo da Itália, só que a Itália não conseguiu vaga na Copa, que pena). Fazendo uma conta nos dedos, é bem provável que, no dia em que este texto estiver enfim traduzido e for publicado, já saberemos qual seleção conquistou o título ou talvez por sorte a publicação saia ainda durante os jogos, quando as chances de todos os países continuarem vivas. No fundo, não temos a esperança tola de vencer a Copa. Esperança é um sentimento que hoje em dia nutrimos só em relação aos assuntos pessoais, em relação a nossa própria caminhada. Embora nós quatro torçamos bastante pela seleção do Senegal, torcemos mais forte por nós mesmos, já que temos nossas Copas do Mundo particulares aqui no Brasil.   

Mas é óbvio que seria lindo se nosso país levantasse o troféu máximo do futebol. A primeira seleção africana campeã do mundo, que rótulo para a sociedade senegalesa. O intrigante é que não conseguimos imaginar quais seriam as consequências imediatas dessa conquista. Será que o Senegal começaria a receber atenções e investimento estrangeiro, uma multinacional, um escritório da ONU? Será que a República do Senegal passaria a ser estudada nas salas de aula dos Estados Unidos?

 

e.

Malick, Ousmane, Faraji e eu não somos irmãos nem primos. Crescemos próximos uns dos outros em Joal-Fadiout. Tão próximos que às vezes dava para escutar em uníssono o que acontecia nas quatro moradias os sons da vida africana, para o bem e para o mal. O que temos em comum é que os pais de cada um de nós se casaram com mais de uma mulher. Traço étnico da nossa terra. Por exemplo, o pai de Ousmane tem três esposas, todas vivendo na mesma casa de telhado bege na ilha de Fadiout. Sempre que Ousmane tenta explicar para os brasileiros essa característica senegalesa, ele é interpretado de modo errado. E escuta piadas fora de contexto.  

Aqui no Brasil não pensamos muito em casar, pelo menos não agora, talvez no futuro. O que pouca gente conhece é que, para um senegalês poder oficializar o matrimônio, os pais do noivo e da noiva precisam aprovar a união e dar o ok final para nós é importante o consenso da família. Em Porto Alegre sabemos de alguns senegaleses que já estão casados com mulheres brasileiras. Tendo adquirido até casa própria e carro e tudo mais. Isso é bom para toda comunidade de imigrantes africanos, uma vez que ajuda a diminuir o preconceito contra nós. A África sofre preconceito.

 

f. 

O Brasil é um país que manteve a escravidão de negros por mais de 300 anos. Nós lemos sobre isso na internet. E a totalidade dos escravos que foram trazidos para cá partiram da costa oeste africana. O Senegal fica na costa oeste africana. Pensando agora a respeito do que aconteceu na vida dos nossos antepassados, sentimos uma mistura de tristeza e desencanto. Mas não raiva. Nem aversão de quem os escravizou — tanto que escolhemos viver aqui no Brasil, no país que violou nossos ancestrais africanos por mais de 300 anos. Não sentimos nem raiva nem aversão porque sabemos que a conjuntura mundial era diferente. 

Cerca de vinte dias atrás, ali numa das laterais da rodoviária, um homem branco se postou em nossa frente e, com rinchos e ulos, começou a fazer uma paródia grosseira do dialeto senegalês que usamos entre nós. Foi uma provocação em tom de zombaria, algo hostil e desrespeitoso, como se fôssemos seres monossilábicos recém-saídos da savana. É um exemplo do preconceito que às vezes sofremos aqui em Porto Alegre, preconceito de um grupo de pessoas que nos julgam analfabetos. Mas a verdade é que não temos ressentimento, não nos incomodamos com o fato de nos classificarem como homens sem letras. Se quiséssemos, poderíamos escrever sobre a escravidão em francês, em árabe, em dialetos africanos e (alguns de nós) inclusive em inglês.

 

g.

Faraji está saindo com uma mulher porto-alegrense. Não chega a ser namoro, ele diz. Estão se conhecendo aos poucos. A parte engraçada (engraçada para nós homens senegaleses) é que, durante o primeiro encontro deles, essa mulher levou Faraji de carro para um quarto que tinha cinco espelhos, banheira de hidromassagem e um teto que abria com controle remoto. Sem falar na cama redonda de lençol vermelho-sangue, que fez Faraji se descobrir um personagem de As mil e uma noites.

Logo que chegamos ao Brasil em 2015, a primeira coisa que estranhamos foi enxergar casais de namorados se beijando em espaços públicos. Beijo de língua, sem constrangimento. Em praças, shopping centers, no Parque da Redenção e na Usina do Gasômetro. Essa troca de intimidade nos ambientes coletivos é impossível de acontecer lá no Senegal não que seja certo ou errado, é apenas uma diferença cultural. Somos mais discretos, quem sabe por causa da nossa herança servil.

Nós quatro já lemos As mil e uma noites. Não é uma história de origem africana. Ela vem de lendas árabes, indianas e persas. No enredo, o rei Xariar é traído pela sua primeira esposa e, a partir dessa traição, a trama do livro ganha desenvolvimento recomendamos a leitura. O que nosso amigo Faraji nos contou foi que, naquela noite com a mulher porto-alegrense, quando ele estava à vontade na cama redonda de lençol vermelho-sangue, não parou de pensar na traição da primeira esposa do rei de As mil e uma noites. Não parou de pensar que a esposa do rei cometera adultério justamente com um escravo. Um escravo.

 

h.

No dia em que recebemos o convite da Ana Luiza para escrevermos estas linhas, estávamos perto do viaduto da Borges. Era uma sexta de céu fechado, logo após a hora do almoço. Ainda não tínhamos vendido nada à tarde. Foi quando ela apareceu do lado direito (não a conhecíamos) e escolheu três pares de meias coloridas, de lã, totalizando R$ 15. Havia educação e afetuosidade no jeito dela, como se fosse alguém do serviço de proteção aos imigrantes. Malick fez a cobrança e pediu se a cliente não tinha uma nota menor as notas de R$ 50 sempre complicaram nosso troco. Para surpresa de nós quatro, a cliente se apresentou e disse que podíamos ficar com a quantia que havia sobrado. Malick, em dúvida, virou-se para o resto de nós com olhos de impasse. Mas demos consentimento, balançando positivamente nossas cabeças. Então Ana Luiza nos explicou os detalhes do seu projeto. “Uma coletânea de contos sobre os países que vão jogar a Copa do Mundo na Rússia, vocês querem escrever sobre o Senegal?” É impossível dizer se ela fez o convite na intuição ou se já estava com o plano pronto na cabeça. “Essa é uma iniciativa dos alunos do escritor Assis Brasil”, Ana Luiza completou. Não fazíamos ideia de quem era Assis Brasil, mas pelo sobrenome nacional só podia ser alguém importante para o país. “Aceitamos”, dissemos no nosso português possível, sentindo no sangue uma fusão de felicidade e desafio. Existem pessoas que sabem que somos alfabetizados.

 

i.

Malick, Ousmane, Faraji e eu gostamos de dizer que o futebol ocupa um lugar meio místico dentro de nós, dentro da nossa percepção de identidade. Mas não tem nada a ver com a Copa do Mundo 2018 na Rússia é algo mais primário do que isso, mais íntimo. Ao longo da nossa infância/adolescência em Joal-Fadiout, o futebol foi para nós uma espécie de capacitação de sentimentos, capacitação para tudo o que encontraríamos em nossas futuras vidas de homens feitos.

Receio, atrevimento, susto, improviso, desespero, paixão, covardia, ímpeto, risco, derrota, fé, inevitabilidade. Tudo isso o futebol trabalhou devagar em nossa índole, lance a lance, partida a partida. Lembramos com carinho de certas passagens. Por exemplo, lá em Joal-Fadiout existe um cemitério misto que abriga em harmonia tanto muçulmanos quanto cristãos, Cimetiere Mixte Musulman Chretien. De acordo com nosso julgamento inocente de crianças-negras-de-pés-descalços, o cemitério era o lugar para onde iam os muçulmanos e os cristãos que eram derrotados nas partidas de futebol. 

Mas não tirávamos isso da nossa criatividade. Havia mitos, folclore, deboche por parte dos mais velhos. Ouvíamos essas ruminações como se estivéssemos diante de palestras sagradas era tudo o que tínhamos ao alcance do imaginário. Pescadores idosos nos reuniam em semicírculo e divulgavam narrativas cheias de fatalidade e drama, de ameaça e profecia. Que época. Olhávamos para as cruzes brancas do cemitério de Joal-Fadiout e aprendíamos cedo sobre as duplicidades da existência senegalesa. Vida e morte. Sorte e azar. Mar e terra. Cristãos e muçulmanos. Mirávamos os rostos afros dos pescadores idosos e, do nosso jeito ainda ingênuo, interpretávamos os ciclos da Mãe África, os ciclos de um povo que nunca teve muita manobra de escolha.

E, em nossos corpos magros de meninos, a ideia chamativa do futebol como pano de fundo para as realidades e irrealidades africanas. Muito varal em nosso entorno. Muita concha de molusco. Muito cheiro de pescado. Acácias, manguezais, baobás. As nuvens carregadas em julho e agosto, as variações sazonais. Pelicanos, hienas, gaivotas. Os ventos do norte e do oeste. Inventávamos campeonatos e ligas regionais, times e divisões. Muito céu em cima. Muito mar ao lado. Muita piroga ancorada esperando pela nova travessia. Cerâmica, turbantes, vestidos estampados. O mercado de peixe e a zona de secagem na parte oriental. Jogávamos nosso futebol cercados pela vida conhecida de Joal-Fadiout, sem desejarmos os ares de outras terras, os portos de homens brancos.  

As partidas às vezes contavam com times cheios, um excesso ruidoso de crianças. Mas em outros momentos éramos obrigados a improvisar jogos de dois contra dois, um contra um. E nessas horas fazíamos uso de nossa fabulação, enxergando torcedores onde só existiam varais com mangas ao vento, enxergando rede de gol onde só havia rede de pesca, enxergando árbitros e técnicos e preparadores físicos onde só havia pescadores hipnotizados pela sua própria subsistência.

         Três anos vivendo no Brasil e já não podemos dizer que continuamos os mesmos quem pode? As circunstâncias brasileiras modificaram nós quatro, sem que no início percebêssemos. Mas ainda que tenhamos incorporado certos hábitos aqui de Porto Alegre, o sentimento em nós é de que nossa africanidade se tornou mais forte, mais autoconsciente. É difícil explicar direito essa impressão. Às vezes observamos o mapa-múndi e é como se o continente africano nos saltasse aos olhos feito um leão insaciável. Nessas ocasiões, o território costeiro do Senegal também adquire uma dimensão bem maior. De área e de significados.

         Talvez soe bobo de nossa parte: o futebol que hoje em dia jogamos ali na margem do Rio Guaíba torna mais viva a noção que temos de nós mesmos. Nos domingos à tarde em que não está chovendo, saímos da zona norte e vamos até a Avenida Beira-Rio, ansiosos por espaço nas partidas improvisadas que acontecem num campo colado ao rio — campinho de terra, sem linha de marcação nas laterais. Noventa por cento de quem joga ali são brasileiros, claro, e além de nós senegaleses também participam alguns haitianos e até um cidadão sírio. Quase uma Copa do Mundo à parte.

         Talvez soe mais bobo ainda: sempre que entramos em campo aqui em Porto Alegre, nós quatro nos cumprimentamos do mesmo jeito que fazíamos antes das partidas de infância em Joal-Fadiout. É uma ritualização antiga que agora (tão longe que estamos da África) imprime em nós um valor diferente, que tem a ver com quem somos, com quem imaginamos ser. A bola dominada em nossos negros pés senegaleses. Muito varal em nosso entorno. Muita concha de molusco. Muito cheiro de pescado. Acácias, manguezais, baobás. E no fim das tardes de domingo, quando a partida ali na margem do Rio Guaíba está terminando, nós gostamos de ver surgir no horizonte aquele risco violeta, meio roxo, que os porto-alegrenses dizem ser o pôr do sol mais bonito do mundo. Cerâmica, turbantes, vestidos estampados. As variações sazonais. O mercado de peixe e a zona de secagem na parte oriental. Muito céu em cima. Muita água ao lado. Muita piroga ancorada esperando pela nova travessia. Todo conjunto de nossas realidades e irrealidades africanas. 


        
a quem interessar possa: entrevista sobre o livro Não Culpe o Narrador
https://www.youtube.com/watch?v=vFU2JzAX4GI

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