Aquele risco violeta, meio roxo
a.
Em maio agora faz três anos que
estamos aqui no Brasil, mas a sensação em nós é de mais tempo. Nossa cidade lá
no Senegal se chama Joal-Fadiout. O fato curioso é que esse tracinho no meio de
Joal-Fadiout é uma ponte de verdade. Joal fica na extensão do continente,
enquanto Fadiout forma uma ilha cheia de telhados beges e cinzas. Mais ou menos
45 mil habitantes. O primeiro presidente do Senegal nasceu lá.
Três anos no Brasil e ainda não
conseguimos aprender bem o português. Até porque Malick, Ousmane, Faraji e eu temos
o hábito de conversar só com outros imigrantes senegaleses, como se continuássemos
vivendo em Joal-Fadiout. É por isso que as palavras que estão aqui foram
originalmente escritas em francês — seria
difícil escrevermos com naturalidade na língua do Brasil. O que fizemos foi procurar
uma escola de idiomas e dizer que precisávamos de um tradutor. Escola Instituto
Roche, na Ramiro Barcelos. Explicamos a ideia do nosso texto, o convite da Ana
Luiza, a inesperada chance de participarmos de uma coletânea de contos.
b.
Moramos
num apartamento de dois quartos na zona norte de Porto Alegre, bairro Passo
D'Areia. O destino inicial era Caxias do Sul, mas acabamos trocando
na última hora — essa passagem
sozinha daria um livro. No geral, as pessoas olham para nós e acham
que a única coisa que sabemos fazer é comercializar itens na rua. Lenços.
Malhas. Panos de prato. E temos certeza que algumas pensam que somos
analfabetos, já que gaguejamos no português.
Lá
no Senegal existem vários dialetos. O principal é o wolof, que prevalece na
televisão e no rádio, dominando inclusive a capital Dakar. A sonoridade do
wolof é bonita. Jërëjëf significa “obrigado”. Taalata é “terça-feira”. As línguas árabe e francesa
também fazem parte do nosso cotidiano: tanto na oralidade quanto na
escrita. Somos alfabetizados.
c.
Malick
é o único de nós quatro que já morou na Europa. Itália. Primeiro em Nápoles (oito
meses) e depois Verona (um ano). Como não podia trabalhar legalmente no setor
de telefonia, que é sua especialidade desde sempre, começou a vender souvenir
ao redor de pontos turísticos. Malick ficou bastante conhecido na cidade de
Verona — pelo menos entre a comunidade senegalesa que
vive lá. Isso porque em certo momento Malick teve a cara de pau negra de querer
algo diferente. É famosa a história de quando ele (aos 27 anos) quis fazer um
teste no time de futebol chamado Hellas Verona. Imagina só, um time
profissional que disputava a primeira divisão do campeonato italiano. Que
sonho. Claro que os italianos não deixaram Malick entrar em nenhum treino.
Mas
ele entrou sim para a lista de fofocas senegalesas em Verona. A notícia se
espalhou entre os nossos como pó na ventania. Malick, o jogador. Malick, o
injustiçado. Existe até uma foto de celular do instante exato em que ele, após
ter sido barrado na secretaria do estádio, deu as costas e voltou cabisbaixo ao
realismo da vida — não sabemos em
qual celular ficou armazenada essa foto. A verdade é que o futebol ocupa um
lugar respeitado e até meio místico dentro de nós quatro.
d.
Daqui
um mês e pouco vai começar a Copa do Mundo 2018 na Rússia. A seleção do Senegal
está dentro (Malick queria muito o Senegal no grupo da Itália, só que a Itália
não conseguiu vaga na Copa, que pena). Fazendo uma conta nos dedos, é bem
provável que, no dia em que este texto estiver enfim traduzido e for publicado,
já saberemos qual seleção conquistou o título —
ou talvez por sorte a publicação saia ainda durante os jogos, quando as chances
de todos os países continuarem vivas. No fundo, não temos a esperança tola de
vencer a Copa. Esperança é um sentimento que hoje em dia nutrimos só em relação
aos assuntos pessoais, em relação a nossa própria caminhada. Embora nós quatro torçamos
bastante pela seleção do Senegal, torcemos mais forte por nós mesmos, já que
temos nossas Copas do Mundo particulares aqui no Brasil.
Mas
é óbvio que seria lindo se nosso país levantasse o troféu máximo do futebol. A
primeira seleção africana campeã do mundo, que rótulo para a sociedade
senegalesa. O intrigante é que não conseguimos imaginar quais seriam as
consequências imediatas dessa conquista. Será que o Senegal começaria a receber
atenções e investimento estrangeiro, uma multinacional, um escritório da ONU?
Será que a República do Senegal passaria a ser estudada nas salas de aula dos
Estados Unidos?
e.
Malick, Ousmane, Faraji e eu não somos irmãos nem primos. Crescemos próximos
uns dos outros em Joal-Fadiout. Tão próximos que às vezes dava
para escutar em uníssono o que acontecia nas quatro moradias —
os sons da vida africana, para o bem e para o mal. O que temos em comum é que
os pais de cada um de nós se casaram com mais de uma mulher. Traço étnico da
nossa terra. Por exemplo, o pai de Ousmane tem três esposas, todas vivendo na
mesma casa de telhado bege na ilha de Fadiout. Sempre que Ousmane tenta
explicar para os brasileiros essa característica senegalesa, ele é interpretado
de modo errado. E escuta piadas fora de contexto.
Aqui
no Brasil não pensamos muito em casar, pelo menos não agora, talvez no futuro.
O que pouca gente conhece é que, para um senegalês poder oficializar o
matrimônio, os pais do noivo e da noiva precisam aprovar a união e dar o ok
final — para nós é importante o consenso da família. Em
Porto Alegre sabemos de alguns senegaleses que já estão casados com mulheres
brasileiras. Tendo adquirido até casa própria e carro e tudo mais. Isso é bom
para toda comunidade de imigrantes africanos, uma vez que ajuda a diminuir o
preconceito contra nós. A África sofre preconceito.
f.
O
Brasil é um país que manteve a escravidão de negros por mais de 300 anos. Nós
lemos sobre isso na internet. E a totalidade dos escravos que foram trazidos
para cá partiram da costa oeste africana. O Senegal fica na costa oeste
africana. Pensando agora a respeito do que aconteceu na vida dos nossos
antepassados, sentimos uma mistura de tristeza e desencanto. Mas não raiva. Nem
aversão de quem os escravizou — tanto
que escolhemos viver aqui no Brasil, no país que violou nossos ancestrais
africanos por mais de 300 anos. Não sentimos nem raiva nem aversão porque
sabemos que a conjuntura mundial era diferente.
Cerca
de vinte dias atrás, ali numa das laterais da rodoviária, um homem branco se postou
em nossa frente e, com rinchos e ulos, começou a fazer uma paródia grosseira do
dialeto senegalês que usamos entre nós. Foi uma provocação em tom de zombaria,
algo hostil e desrespeitoso, como se fôssemos seres monossilábicos recém-saídos
da savana. É um exemplo do preconceito que às vezes sofremos aqui em Porto
Alegre, preconceito de um grupo de pessoas que nos julgam analfabetos. Mas a
verdade é que não temos ressentimento, não nos incomodamos com o fato de nos classificarem
como homens sem letras. Se quiséssemos, poderíamos escrever sobre a escravidão
em francês, em árabe, em dialetos africanos e (alguns de nós) inclusive em
inglês.
g.
Faraji
está saindo com uma mulher porto-alegrense. Não chega a ser namoro, ele diz. Estão
se conhecendo aos poucos. A parte engraçada (engraçada para nós homens
senegaleses) é que, durante o primeiro encontro deles, essa mulher levou Faraji
de carro para um quarto que tinha cinco espelhos, banheira de hidromassagem e
um teto que abria com controle remoto. Sem falar na cama redonda de lençol
vermelho-sangue, que fez Faraji se descobrir um personagem de As mil
e uma noites.
Logo
que chegamos ao Brasil em 2015, a primeira coisa que estranhamos foi enxergar
casais de namorados se beijando em espaços públicos. Beijo de língua, sem
constrangimento. Em praças, shopping centers, no Parque da Redenção e na Usina
do Gasômetro. Essa troca de intimidade nos ambientes coletivos é impossível de
acontecer lá no Senegal — não que seja certo
ou errado, é apenas uma diferença cultural. Somos mais discretos, quem sabe por
causa da nossa herança servil.
Nós
quatro já lemos As mil e uma noites.
Não é uma história de origem africana. Ela vem de lendas árabes, indianas e
persas. No enredo, o rei Xariar é traído pela sua primeira esposa e, a partir
dessa traição, a trama do livro ganha desenvolvimento — recomendamos a leitura. O que nosso amigo Faraji
nos contou foi que, naquela noite com a mulher porto-alegrense, quando ele
estava à vontade na cama redonda de lençol vermelho-sangue, não parou de pensar
na traição da primeira esposa do rei de As
mil e uma noites. Não parou de pensar que a esposa do rei cometera adultério justamente com um
escravo. Um escravo.
h.
No
dia em que recebemos o convite da Ana Luiza para escrevermos estas linhas,
estávamos perto do viaduto da Borges. Era uma sexta de céu fechado, logo após a
hora do almoço. Ainda não tínhamos vendido nada à tarde. Foi quando ela apareceu
do lado direito (não a conhecíamos) e escolheu três pares de meias coloridas,
de lã, totalizando R$ 15. Havia educação e afetuosidade no jeito dela, como se
fosse alguém do serviço de proteção aos imigrantes. Malick fez a cobrança e
pediu se a cliente não tinha uma nota menor —
as notas de R$ 50 sempre complicaram nosso troco. Para surpresa de nós quatro,
a cliente se apresentou e disse que podíamos ficar com a quantia que havia
sobrado. Malick, em dúvida, virou-se para o resto de nós com olhos de impasse.
Mas demos consentimento, balançando positivamente nossas cabeças. Então Ana
Luiza nos explicou os detalhes do seu projeto. “Uma coletânea de contos sobre
os países que vão jogar a Copa do Mundo na Rússia, vocês querem escrever sobre
o Senegal?” É impossível dizer se ela fez o convite na intuição ou se já estava
com o plano pronto na cabeça. “Essa é uma iniciativa dos alunos do escritor
Assis Brasil”, Ana Luiza completou. Não fazíamos ideia de quem era Assis
Brasil, mas pelo sobrenome nacional só podia ser alguém importante para o país.
“Aceitamos”, dissemos no nosso português possível, sentindo no sangue uma fusão
de felicidade e desafio. Existem pessoas que sabem que somos alfabetizados.
i.
Malick, Ousmane, Faraji e eu
gostamos de dizer que o futebol ocupa um
lugar meio místico dentro de nós, dentro da nossa percepção de identidade. Mas
não tem nada a ver com a Copa do Mundo 2018 na Rússia — é algo mais primário do que isso, mais íntimo.
Ao longo da nossa infância/adolescência em Joal-Fadiout, o futebol foi
para nós uma espécie de capacitação de sentimentos, capacitação para tudo o que
encontraríamos em nossas futuras vidas de homens feitos.
Receio,
atrevimento, susto, improviso, desespero, paixão, covardia, ímpeto, risco,
derrota, fé, inevitabilidade. Tudo isso o futebol trabalhou devagar em nossa
índole, lance a lance, partida a partida. Lembramos com carinho de certas
passagens. Por exemplo, lá em Joal-Fadiout existe um cemitério misto que abriga
em harmonia tanto muçulmanos quanto cristãos, Cimetiere Mixte Musulman Chretien. De acordo com nosso julgamento inocente
de crianças-negras-de-pés-descalços, o cemitério era o lugar para onde iam os
muçulmanos e os cristãos que eram derrotados nas partidas de futebol.
Mas não tirávamos isso da nossa
criatividade. Havia mitos, folclore, deboche por parte dos mais velhos.
Ouvíamos essas ruminações como se estivéssemos diante de palestras sagradas —
era tudo o que tínhamos ao alcance do imaginário. Pescadores idosos nos reuniam
em semicírculo e divulgavam narrativas cheias de fatalidade e drama, de ameaça
e profecia. Que época. Olhávamos para as cruzes brancas do cemitério de Joal-Fadiout e aprendíamos cedo sobre as
duplicidades da existência senegalesa. Vida e morte. Sorte e azar. Mar e terra.
Cristãos e muçulmanos. Mirávamos os rostos afros dos pescadores idosos e, do
nosso jeito ainda ingênuo, interpretávamos os ciclos da Mãe África, os ciclos
de um povo que nunca teve muita manobra de escolha.
E, em nossos corpos magros de
meninos, a ideia chamativa do futebol como pano de fundo para as realidades e
irrealidades africanas. Muito varal em nosso entorno. Muita concha de molusco.
Muito cheiro de pescado. Acácias, manguezais, baobás. As nuvens carregadas em
julho e agosto, as variações sazonais. Pelicanos, hienas, gaivotas. Os ventos do norte e do oeste. Inventávamos
campeonatos e ligas regionais, times e divisões. Muito céu em cima. Muito mar
ao lado. Muita piroga ancorada esperando pela nova travessia. Cerâmica,
turbantes, vestidos estampados. O mercado de peixe e a zona de secagem na parte
oriental. Jogávamos nosso futebol cercados pela vida conhecida de Joal-Fadiout,
sem desejarmos os ares de outras terras, os portos de homens brancos.
As partidas às vezes contavam
com times cheios, um excesso ruidoso de crianças. Mas em outros momentos éramos
obrigados a improvisar jogos de dois contra dois, um contra um. E nessas horas
fazíamos uso de nossa fabulação, enxergando torcedores onde só existiam varais
com mangas ao vento, enxergando rede de gol onde só havia rede de pesca,
enxergando árbitros e técnicos e preparadores físicos onde só havia pescadores hipnotizados
pela sua própria subsistência.
Três
anos vivendo no Brasil e já não podemos dizer que continuamos os mesmos —
quem pode? As circunstâncias brasileiras modificaram nós quatro, sem que no
início percebêssemos. Mas ainda que tenhamos incorporado certos hábitos aqui de
Porto Alegre, o sentimento em nós é de que nossa africanidade se tornou mais
forte, mais autoconsciente. É difícil explicar direito essa impressão. Às vezes
observamos o mapa-múndi e é como se o continente africano nos saltasse aos
olhos feito um leão insaciável. Nessas ocasiões, o território costeiro do
Senegal também adquire uma dimensão bem maior. De área e de significados.
Talvez soe bobo de nossa parte: o futebol que hoje em dia jogamos ali na margem do Rio Guaíba torna mais viva a noção que temos de nós mesmos. Nos domingos à tarde em que não está chovendo, saímos da zona norte e vamos até a Avenida Beira-Rio, ansiosos por espaço nas partidas improvisadas que acontecem num campo colado ao rio — campinho de terra, sem linha de marcação nas laterais. Noventa por cento de quem joga ali são brasileiros, claro, e além de nós senegaleses também participam alguns haitianos e até um cidadão sírio. Quase uma Copa do Mundo à parte.
Talvez
soe mais bobo ainda: sempre que entramos em campo aqui em Porto Alegre, nós
quatro nos cumprimentamos do mesmo jeito que fazíamos antes das partidas de
infância em Joal-Fadiout. É uma ritualização antiga que agora (tão longe que
estamos da África) imprime em nós um valor diferente, que tem a ver com quem somos,
com quem imaginamos ser. A bola dominada em nossos negros pés senegaleses.
Muito varal em nosso entorno. Muita concha de molusco. Muito cheiro de pescado.
Acácias, manguezais, baobás. E no fim das tardes de domingo, quando a partida ali
na margem do Rio Guaíba está terminando, nós gostamos de ver surgir no
horizonte aquele risco violeta, meio roxo, que os porto-alegrenses dizem ser o
pôr do sol mais bonito do mundo. Cerâmica, turbantes, vestidos estampados. As
variações sazonais. O mercado de peixe e a zona de secagem na parte oriental.
Muito céu em cima. Muita água ao lado. Muita piroga ancorada esperando pela
nova travessia. Todo conjunto de nossas realidades e irrealidades africanas.
https://www.youtube.com/watch?v=vFU2JzAX4GI
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