terça-feira, 18 de junho de 2019

*matéria 3


Desdém gastronômico

A indiferença de grande parte dos caxienses pelas comidas de rua, pelas barraquinhas metálicas de esquina 




O antropólogo Franz Boas tinha um moleskine bege, a capa com orelhas. Foi ali que ele escreveu (em alemão e inglês) uma ideia que sacudiria forte o tapete da antropologia. Mais ou menos assim... Não é a herança biológica a responsável pelos hábitos e condutas do ser humano. Não são os genes. O que na verdade nos faz viver do jeito que vivemos são os fatores culturais do entorno: linguagem, moralidades, protocolos, heróis compartilhados, ordenação do que dá ou não status. Bem como os vínculos estabelecidos com a comida.

Em Caxias do Sul, por exemplo, região da farta mesa italiana, a relação com as barraquinhas metálicas de esquina ainda é ambígua. E meio preconceituosa. Para certos grupos sociais daqui, existe a interpretação de que almoçar um cachorro-quente na calçada pode soar como um sinal de desprestígio – ou rebaixamento financeiro. Amarrando algumas opiniões que estão soltas pela cidade, é identificável o pensamento de que as barraquinhas metálicas de esquina são uma opção para as pessoas que não cultivam o suposto bom gosto.

“Eu já senti isso em Caxias”, diz Nelfy Rosa Vargas Campos, 49, colombiana que vende cachorro-quente numa barraquinha vistosa, ajeitada, na Av. Júlio com a Feijó Júnior. Embora vivendo em Caxias há dezesseis anos, ela ainda encaixa um pouco de espanhol nas frestas do português – encaixe que faz levantar uma atmosfera rica de multiculturalismo, de narrativas transversais. “Às vezes eu noto aqui um olhar de..., tu sabe. Lá na Colômbia a gente gosta de comer na rua. Mucho. A rua é cheia de sabor.”

 

a performance dos Food Trucks

            

Eventos de Food Trucks não possuem relação com as barraquinhas metálicas de esquina. São fenômenos diferentes. Metaforizando um pouco, é como se os Food Trucks estivessem dentro de uma performance, de uma manifestação teatral: há sempre um horário marcado para eles, há o palco específico, há o preço mais elevado, há a estetização do ambiente – características válidas que cumprem sua função, mas que não conversam com a proposta diária e espontânea das barraquinhas raiz.

Aliás, em eventos com Food Trucks (caminhões) não existe espaço para os Food Carts (carrinhos). A barraquinha metálica de crepe ou hot dog dificilmente ganha uma oportunidade nesses círculos, já que seu show é menos pirotécnico. “Sabe o que mais? Nosso problema é também com o poder público. A gente tá sempre na corda bamba, a prefeitura já ameaçou tirar a gente daqui como fizeram com a banca de revista da praça”, diz Paulo Valença, 64, que há vinte e cinco anos rege sua barraquinha metálica na esquina da Av. Júlio com a Moreira César.

Ele faz um cálculo de cabeça e diz que seria preciso ter uns quarenta mil reais para adquirir um Food Truck “com todas aquelas aparelhagens”. Seu objetivo é outro. Seu público-alvo são as pessoas interessadas numa comida simples mas saborosa, com preço mais acessível, cachorros-quentes que, para serem vendidos, não precisam de um evento divulgado em redes sociais. Na sua esquina de vinte e cinco anos, Paulo vende hot dogs autossuficientes.  

 

pancho, chivito, choripan

 

Seria ingênuo e desonesto comparar Caxias do Sul com outras cidades – mas o que dá para fazer é falar sobre outras cidades sem citar Caxias na mesma frase. Afinal, é inteligente olhar para os lados. E Montevidéu está quase ao lado. Lá, ao que tudo indica, comer em pé na calçada é uma prática mais presente, mais intuitiva. A predisposição rueira faz com que ninguém estigmatize a gastronomia de calçada, a alimentação despretensiosa.

Lauren Fogaça, 20, editora de audiovisuais, viveu oito anos no Uruguai e tem uma relação afetuosa com Montevidéu. “É quase um ritual social por exemplo tomar um mate na rambla todos os dias no fim da tarde. Então o que eu acho é que a cultura da comida de rua lá vem bem natural, porque é um pessoal que já se apropriou desse espaço.” E nesse espaço aberto há choripans, panchos, chivitos, dulce de leche. Há convívios e sociabilizações.

 

estreitamento, psicologia, case

 

Cidades que não alargam suas calçadas acabam alargando suas ruas – a Sinimbu em Caxias chega a ter quatro pistas de rodagem, como uma Freeway. O efeito chicote é menos superfície para que pedestres se encontrem, ocupem ambientes, façam refeições improvisadas ao ar livre. Um estreitamento da circulação a pé. Quem sabe esteja aí uma das chaves explicativas para a indiferença de muitos caxienses pelas barraquinhas de esquina.

A outra chave pode estar na psicologia da cidade: o legado de fartura italiana e certa postura de sofisticação empresarial. Mas essas são apenas teses, suposições que explicariam ou não o desdém de algumas pessoas pelos cachorros-quentes a céu aberto. Se o antropólogo Franz Boas estivesse vivo e se oferecesse para etnografar a cidade, aí sim haveria uma resposta científica. Quatro ou cinco meses de observação participante dele, enchendo seu moleskine com anotações. Talvez Caxias do Sul virasse um case importante para a antropologia.

 

4 comentários:

  1. Excelente, Mantovani! A relação de um povo com a comida é um importante indicador simbólico..e mesclando o tema com a camada temática "cidade", bom, aí sim as leituras ganham riqueza e complexidade..Parabéns, baita texto!

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  2. Materias de fundo e criativas, lançando um olhar diferenciado sobre a urbe, fugindo dos estereotipos oficialescos. Material digno de uma revista Piauí.

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