A
indiferença de grande parte dos caxienses pelas comidas de rua, pelas
barraquinhas metálicas de esquina
O antropólogo Franz Boas tinha um
moleskine bege, a capa com orelhas. Foi ali que ele escreveu (em alemão e
inglês) uma ideia que sacudiria forte o tapete da antropologia. Mais ou menos
assim... Não é a herança biológica a responsável pelos hábitos e condutas do
ser humano. Não são os genes. O que na verdade nos faz viver do jeito que vivemos
são os fatores culturais do entorno: linguagem, moralidades, protocolos, heróis
compartilhados, ordenação do que dá ou não status. Bem como os vínculos estabelecidos
com a comida.
Em Caxias do Sul, por exemplo, região
da farta mesa italiana, a relação com as barraquinhas metálicas de esquina ainda
é ambígua. E meio preconceituosa. Para certos grupos sociais daqui, existe a
interpretação de que almoçar um cachorro-quente na calçada pode soar como um sinal
de desprestígio – ou rebaixamento financeiro. Amarrando algumas opiniões que estão
soltas pela cidade, é identificável o pensamento de que as barraquinhas
metálicas de esquina são uma opção para as pessoas que não cultivam o suposto bom
gosto.
“Eu já senti isso em Caxias”,
diz Nelfy Rosa Vargas Campos, 49, colombiana que vende cachorro-quente numa
barraquinha vistosa, ajeitada, na Av. Júlio com a Feijó Júnior. Embora vivendo
em Caxias há dezesseis anos, ela ainda encaixa um pouco de espanhol nas frestas
do português – encaixe que faz levantar uma atmosfera rica de multiculturalismo,
de narrativas transversais. “Às vezes eu noto aqui um olhar de..., tu sabe. Lá
na Colômbia a gente gosta de comer na rua. Mucho.
A rua é cheia de sabor.”
a performance dos Food Trucks
Eventos de Food Trucks não
possuem relação com as barraquinhas metálicas de esquina. São fenômenos
diferentes. Metaforizando um pouco, é como se os Food Trucks estivessem dentro
de uma performance, de uma manifestação teatral: há sempre um horário marcado
para eles, há o palco específico, há o preço mais elevado, há a estetização do
ambiente – características válidas que cumprem sua função, mas que não
conversam com a proposta diária e espontânea das barraquinhas raiz.
Aliás, em eventos com Food
Trucks (caminhões) não existe espaço para os Food Carts (carrinhos). A
barraquinha metálica de crepe ou hot dog dificilmente ganha uma oportunidade nesses
círculos, já que seu show é menos pirotécnico. “Sabe o que mais? Nosso problema
é também com o poder público. A gente tá sempre na corda bamba, a prefeitura já
ameaçou tirar a gente daqui como fizeram com a banca de revista da praça”, diz
Paulo Valença, 64, que há vinte e cinco anos rege sua barraquinha metálica na
esquina da Av. Júlio com a Moreira César.
Ele faz um cálculo de cabeça e
diz que seria preciso ter uns quarenta mil reais para adquirir um Food Truck
“com todas aquelas aparelhagens”. Seu objetivo é outro. Seu público-alvo são as
pessoas interessadas numa comida simples mas saborosa, com preço mais acessível,
cachorros-quentes que, para serem vendidos, não precisam de um evento divulgado
em redes sociais. Na sua esquina de vinte e cinco anos, Paulo vende hot dogs autossuficientes.
pancho, chivito, choripan
Seria ingênuo e
desonesto comparar Caxias do Sul com outras cidades – mas o que dá para fazer é
falar sobre outras cidades sem citar Caxias na mesma frase. Afinal, é
inteligente olhar para os lados. E Montevidéu está quase ao lado. Lá, ao que
tudo indica, comer em pé na calçada é uma prática mais presente, mais intuitiva.
A predisposição rueira faz com que ninguém estigmatize a gastronomia de
calçada, a alimentação despretensiosa.
Lauren Fogaça, 20, editora
de audiovisuais, viveu oito anos no Uruguai e tem uma relação afetuosa com Montevidéu.
“É quase um ritual social por exemplo tomar um mate na rambla todos os dias no
fim da tarde. Então o que eu acho é que a cultura da comida de rua lá vem bem natural,
porque é um pessoal que já se apropriou desse espaço.” E nesse espaço aberto há
choripans, panchos, chivitos, dulce de leche. Há convívios e sociabilizações.
estreitamento, psicologia, case
Cidades que não alargam
suas calçadas acabam alargando suas ruas – a Sinimbu em Caxias chega a ter
quatro pistas de rodagem, como uma Freeway. O efeito chicote é menos superfície
para que pedestres se encontrem, ocupem ambientes, façam refeições improvisadas
ao ar livre. Um estreitamento da circulação a pé. Quem sabe esteja aí uma das
chaves explicativas para a indiferença de muitos caxienses pelas barraquinhas
de esquina.
A outra chave pode estar na psicologia da cidade: o legado de fartura italiana e certa postura de sofisticação empresarial. Mas essas são apenas teses, suposições que explicariam ou não o desdém de algumas pessoas pelos cachorros-quentes a céu aberto. Se o antropólogo Franz Boas estivesse vivo e se oferecesse para etnografar a cidade, aí sim haveria uma resposta científica. Quatro ou cinco meses de observação participante dele, enchendo seu moleskine com anotações. Talvez Caxias do Sul virasse um case importante para a antropologia.
Excelente, Mantovani! A relação de um povo com a comida é um importante indicador simbólico..e mesclando o tema com a camada temática "cidade", bom, aí sim as leituras ganham riqueza e complexidade..Parabéns, baita texto!
ResponderExcluirGrazie!
ExcluirMaterias de fundo e criativas, lançando um olhar diferenciado sobre a urbe, fugindo dos estereotipos oficialescos. Material digno de uma revista Piauí.
ResponderExcluirGrazie!
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