A
prostituição e o marketing informal, urbano, de calçada
O dicionário explica que o
substantivo santinho tem, na sua
essência, dois significados. (1) Pequena imagem ou gravura com teor religioso. (2)
Folheto de propaganda eleitoral com o nome, a foto e o número do candidato.
Nenhuma dúvida sobre essas acepções. Mas acontece que a língua portuguesa é
afeita à elasticidade, ela gosta de criar novas aberturas para suas palavras. É
por isso que os santinhos, além de religiosos
e políticos, são também sexuais há muitos anos.
Já que não fazem parte do
público-alvo, pedestres mulheres talvez não percebam o fenômeno que briga por
espaço nas calçadas. Em Caxias do Sul, assim como em qualquer outra cidade populosa
do Brasil, se você for homem e estiver caminhando sozinho pelo centro, é alta a
chance de que um santinho sexual chegue discretamente às suas mãos. Em preto e
branco ou colorido, com slogans, recursos gráficos, ambientações. E às vezes até
indicando as bandeiras de cartão de crédito que são aceitas.
De novo: essa plataforma não
surgiu agora. É fato que os interiores dos orelhões cumprem há décadas a função
de abrigar folhetos com propostas eróticas. O problema é que diminuiu o número
de pessoas que utilizam telefones públicos. Eis então a importância, segundo o
ponto de vista das agências de sexo pago, da distribuição de santinhos nas
calçadas – essa tática de mão-em-mão tem um alcance imediato e sequencial.
metodologias, despersonalização
No centro de Caxias do Sul, várias
agências de prostituição (no mínimo 7) utilizam o marketing dos santinhos. E
cada uma adota metodologias próprias de panfletagem, conforme sua estrutura e
seu organograma. Uma das distinções tem a ver com a pessoa encarregada de fazer
a distribuição do material. Em certas agências, as próprias profissionais do
sexo se alternam na entrega dos santinhos, ao passo que em outras é uma pessoa terceirizada
quem dissemina os anúncios impressos.
Além da logística, há também
diferenças em relação ao design, à linguagem empregada, ao tipo de fotografia
que os santinhos utilizam. Alguns são discretos e arejados, com escolhas
estéticas que se aproximam bastante do clean.
Em contrapartida, outros utilizam formas composicionais que andam lado a lado
com a explicitação, apostando suas fichas no choque visual, na excentricidade, no
despertamento dos instintos.
Várias diferenças estilísticas,
mas há pelo menos uma característica que unifica todos os santinhos sexuais. Numa
época de celebradas expressões como “agregar valor à marca” e “call to action”, os santinhos, de modo
inevitável, acabam despersonalizando as mulheres que são ali anunciadas. Não
existem rostos (quando existem, estão desfocados) nem identidades reais. O que
há são objetificações, estereótipos, alcunhas apelativas do tipo a dominadora, a novinha de 18.
agência
1 (vamos chamá-la assim)
São 17h10, segunda-feira.
A entregadora de santinhos da agência 1 está na esquina da Av. Júlio com a
Garibaldi. É uma funcionária terceirizada, diz que nunca fez parte da equipe de
mulheres da agência. Embora sua estatura pequena lembre a de uma pré-adolescente,
os traços do rosto batem com os trinta anos que ela afirma ter – talvez seja até
mais velha. Explica que não tem o hábito de conversar em serviço. Prefere
resguardar o nome, é tímida.
E não para de se
movimentar lateralmente na calçada, sem relaxar na tarefa de distribuir os
anúncios. “Tem cinco meninas na casa”, diz e aponta o dedo, “é ali na outra
quadra”. O santinho que ela entrega (o mais discreto entre os coletados) avisa
que há atendimentos aos domingos e especifica os nomes: Lara, Larissa, Bruna,
Taís, Bia. Quando questionada sobre as faixas etárias e classes sociais dos
homens a quem ela entrega os folhetos, a resposta que sai é generalizada. A
única coisa que ela diz com segurança é que distribui muitos por dia.
agências 2 e 3
17h18, próximo
ao Shopping Prataviera. A mulher que entrega os santinhos da agência 2 não fica
o dia inteiro na calçada – ela diz que também faz programa, de acordo com o
revezamento interno. Conta que se chama Bianca e que tem 22 anos. Mostra-se
receptiva ao diálogo: olha nos olhos, sustenta a voz, dá respostas completas. “Hoje
tem seis meninas no apartamento. Chega a subir trinta e cinco homens por dia,
às vezes até mais, depende da época do mês. A gente evita entregar os anúncios
só pra bem adolescente e pra homem muito muito velho, o resto vai.”
17h23.
O homem que distribui os santinhos da agência 3 está a cinco passos de Bianca. Ao
que parece, não há clima de concorrência entre as agências. “Tem clientela pra
todos, né”, ele diz. E confessa que as mulheres do anúncio não são as mulheres
da casa. “A gente usa umas fotos que chamam mais atenção, é normal fazer isso”,
justifica. Ao contrário do que muita gente poderia supor, os homens jovens
(entre 18 e 25 anos) representam os clientes mais frequentes para a agência 3.
“É quem mais vem.”
sororidade, natureza humana
Sempre
os franceses: além do decisivo maio de 68, a França teve ainda o junho de 75. Cerca
de 150 prostitutas ocuparam uma das igrejas de Lyon, a Saint-Nizier. “Uma
balbúrdia” – quem sabe também lá alguém tenha usado a maldosa expressão. A
verdade é que essas mulheres, armadas com orgulho e autorrespeito, resolveram
se aglomerar para exigir direitos referentes à sua profissão. Um bater-de-pés
orquestrado, uma amostra importante da força da sororidade.
Mas a prostituição ainda é tabu. Talvez para sempre. Enquanto algumas pessoas a interpretam como ofensa ao corpo e à dignidade, outras a reconhecem como parte constitutiva do livre-arbítrio, da liberdade individual. O curioso é que, nesse meio-tempo de embate de conceitos, os santinhos sexuais parecem ser realidades cada vez mais presentes – que, a seu modo, contam sim uma história significativa (e ilustrada) sobre certas facetas da natureza humana. Uma história publicada, impressa em papel offset.
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