domingo, 30 de junho de 2019

*matéria 4


Eli

A invisibilidade e o preconceito

contra os homens trans 



No início de cada manhã, em vez do hino nacional brasileiro, as escolas deveriam entoar Shakespeare. “Há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que sonha a tua filosofia”, diz Hamlet na cena V do segundo ato. Puxando para hoje, o que a filosofia de Horácio não consegue captar é que, no mundo dos homens, há várias masculinidades possíveis, não só a masculinidade fálica.

Até seus 20 anos, Eli se reconhecia como mulher cisgênero e lésbica. “Mas quando eu dizia isso em alto e bom tom eu sentia que estava mentindo.” Essa automentira começou a ser desfeita quando Eli descobriu que existiam homens trans: um território novo e habitável. Primeiro, pesquisou sobre o que estava sentindo. Depois, entrou em contato com alguns trans. “Percebi que os sentimentos dessas pessoas e os meus combinavam.”

Porém essa combinação demorou até se estabelecer. O autoconceito de Eli teve várias configurações até chegar ao ponto em que se encontra hoje, aos 25 anos: um homem trans. “Passei um bocado de tempo até aceitar que a identidade da gente deve fluir quando não nos sentimos confortáveis.” Quem o ajudou (e ainda ajuda) no processo transexualizador foi a namorada, Beatriz, com quem ele mora no centro de Curitiba.

No seu passado de mulher cis e lésbica, Eli enfrentou a coleção de preconceitos clássicos. “De ser chamado de sapatão na rua e a não aceitação da família.” Isso já foi. Em 2019, as hostilidades contra ele são de outra escala, já que homens trans sofrem desrespeitos numa dicotomia: ou são tratados com negação ou se tornam um alvo literal. É seu fado. 

lésbica masculina,

homem trans

 

O primeiro dos termos acima, se pronunciado com peçonha na saliva, soará ofensivo. Sem peçonha, é um termo usado até em artigos científicos, dentro dos sentidos das lesbianidades. Dito isso, surge a pergunta: qual é a fronteira entre uma lésbica masculina e um homem trans? “A fronteira é a autoidentificação”, diz Eli. Diz ainda que, à medida que estuda questões sobre sexualidade e gênero, sente-se cada vez mais ligado às bandeiras que adotou. Bandeiras coletivas. Mas Eli faz questão de realçar sua singularidade. “Construo minha expressão de gênero de um jeito todo meu, único.”

O segundo termo do subtítulo é bem mais vulnerável, inclusive no próprio movimento LGBT. “Falando do T, dentro do movimento a invisibilidade e o preconceito contra pessoas trans é aterrorizante”, denuncia Eli. Terror também é a expectativa de vida para trans no Brasil, que (segundo a ANTRA) é de 35 anos. Não por doença. 35 anos e então acontece o cerco no beco sem saída, feito uma cena de Scorsese. A transfobia no Brasil não se contenta só com memes de WhatsApp, ela arregaça com barra de ferro, madeira, pedra, punho fechado. Sempre em bando.

 

ex-nome, transição

 

“É extremamente invasivo e desrespeitoso perguntar o nome pelo qual uma pessoa trans respondia antes da transição”, diz Eli Bruno do Prado Rocha Rosa. Graças à publicação do Provimento nº 73/2018, ele conseguiu retificar seus documentos no ano passado. Explica que escolheu o novo nome de acordo com dois critérios: que fosse curto e que fosse neutro. “O composto Bruno foi uma adição apenas porque seria esse o nome que minha família teria me dado caso eu tivesse nascido com pênis.”

Antes do 73/2018, pessoas trans não conseguiam a retificação de seus nomes sem laudos psicológicos arrastados. E precisavam de sorte, pois a decisão judicial corria sempre o risco de cair nas mãos de um juiz relutante – como se identidade de gênero fosse uma ameaça à ordem-e-progresso. Hoje, o processo de alteração de nome para trans está menos invasivo: independe de autorização externa, de tratamento hormonal, de transgenitalização.

 

ginecologia, estética

 

Homens trans precisam de ginecologista, ainda que relutem. Só que essa relutância tem fundamento – é um jeito de resguardo, autodefesa. Porque ainda existe desinformação por parte de muitos ginecologistas. E de recepcionistas, cujas perguntas deslocadas podem constranger. “À parte da saúde ginecológica, eu faço exames de sangue e tenho consultas com uma endocrinologista pelo SUS”, diz Eli. No CPATT de Curitiba, ele tem acesso a um atendimento exclusivo para pessoas trans e consegue tirar dúvidas em relação ao seu corpo.

Eli conta que, para ele, os conceitos de masculino e feminino não fazem tanto sentido. “Ter o peito liso não é ser masculino, como ter seios volumosos não é feminino.” A partir dessa fala, nota-se que a escolha de formatos corporais não tem a ver com gênero, mas sim com gosto individual. Pessoas trans (bem como pessoas cis) podem desejar ou não se submeter a cirurgias reparadoras. No caso de Eli, existe a vontade de fazer a mastectomia, “por questões estéticas, do mesmo jeito que alguém poderia querer fazer uma rinoplastia ou uma lipo”.

 

pertencimento, seletividade

 

Nos círculos masculinos da sociedade, as atitudes machistas podem caminhar nas linhas ou nas entrelinhas. Depende do círculo. Depende do que está em jogo. “Muitos homens trans adotam posturas machistas para serem vistos como iguais entre homens cis e eu compreendo que isso parte de uma necessidade de pertencer a um grupo”, diz Eli. Nada mais humano: o grupo. Por outro lado, há trans que não se sentem impelidos a legitimar o machismo. Resistem. Mesmo que precisem abrir mão do amparo de alguns círculos.

Seletividade. “A saída pra manter alguma estabilidade emocional tem sido me cercar de pessoas trans ou pessoas empáticas ao movimento trans”, diz Eli, num desabafo sem suspiros. Ficar ao lado de gente esclarecida. É por isso que nos grupos de convívio dele há um fluxo expressivo de professores. Eli faz duas graduações: Filosofia na UFPR e Biblioteconomia na Uniasselvi – cursando ainda uma extensão em LIBRAS. E trabalha na Casa de Leitura Nair de Macedo, onde organiza seus rendimentos, suas amizades, suas leituras.

feminismo,

realismo fantástico

 

“Se me perguntam se eu sou feminista, eu prefiro me colocar como pró-feminismo. O local de fala não é meu, é das mulheres, ainda que haja pautas em intersecção com homens trans”, diz Eli, num tom firme e estável. Tom de quem pesquisa. Tom de quem sabe que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a filosofia de Horácio.

Até porque Horácio não pôde ler Cem anos de solidão. Eli pôde. “Foi uma leitura e tanto pra mim.” Deve ter sido, pois o realismo fantástico instigou Eli a se expressar na literatura: já publicou três livros. Mesmo sabendo que hoje as pessoas preferem audiovisuais. Mesmo sabendo que a escrita é uma prática sem muito retorno. Não importa. Tanto a literatura quanto a identidade trans são assuntos pessoais – não dependem de tapinhas nas costas. No centro de Curitiba, a vida de Eli está ok assim.


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