As
realidades de Natália Caroline N. Portilho,
a
xilofonista da Av. Júlio
Aquela famosa canção dos anos
60 diz: “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Natália não espera
acontecer. E faz doze horas por dia em Caxias do Sul, sempre na esquina da
Garibaldi com a Av. Júlio. Seu xilofone tem onze teclas cinzas, pequenas, cujas
notas musicais são despertadas pelo toque de uma baqueta. Tudo muito rápido e
rítmico. Tudo muito a céu aberto.
Aos pés de Natália, fica
posicionado o pote que recebe as moedas e as cédulas — pote mágico, porque é
dali que sai todo o sustento dela. Aos 29 anos, Natália constrói a vida
entretendo musicalmente os pedestres que se aproximam da sua órbita de calçada.
“Eu toco fábulas, poemas, histórias.” E ajuda a culturalizar a avenida de uma
cidade que atualmente não dá tanta bola à cultura.
água, deslocamentos
Natália nasceu em Belém, Pará. A
convivência com os pais foi uma história abreviada cujos parágrafos Natália
prefere suprimir. O que ela não suprime é o fato de que foi morar nos fundos de
um salão de beleza, atenta aos movimentos que aconteciam ao redor. Segundo a narrativa
de Natália, sua meninice está marcada por uma atmosfera de extremo valor à
pureza, à simbologia da água. “Me lembro dos poços naturais de todo o norte, eu
amo água.”
Água combina com fluidez, que
combina com deslocamento. Natália já se deslocou bastante pelo Brasil. Na
Bahia, encontrou aconchego nas lonas de um circo que era tocado por um senhor
francês de nome Paolo. “Eu praticava tecido com uma artista espanhola e aprendi
a me apresentar naquela corda suspensa, sabe?” Também foi na Bahia que Natália
se deparou com a água dos seus sonhos, na Lapa Doce, Chapada Diamantina. “Eu
estava bem selvagem lá”, diz e mostra um sorriso ilimitado.
filho, distância
Não faz
muito que ela perdeu a guarda do pequeno Ártico —
assunto sobre o qual Natália se alonga de modo vulnerável. Por isso, aqui aparece
apenas uma espécie de índice da história. 1) Juiz de Caxias interpreta que o
estilo de vida da mãe não é o ideal para a criança. 2) Menino é conduzido para
um abrigo. 3) A mãe se organiza para reconquistar a guarda do filho. 4) A
angústia silenciosa que só é suavizada pelo som do xilofone.
sotaques, amores
estrangeiros
Natália tem um sotaque misturado, de difícil
classificação. Sotaque que não é percebido nem como nortista nem como sulista. Isso
se deve ao fato de Natália já ter morado em vários lugares (PA, BA, SC, RS,
Argentina) e também se relacionado com dois estrangeiros. O namorado francês
não marcou tanto assim a vida dela. Mas o sueco Farfar sim. “Ele tinha um
cabelo dread que vinha até aqui.” Mesmo hoje, após anos do término, após já não
existirem mais notícias dele, Natália diz ainda sentir um ciúme irracional de
Farfar. “Não sei te explicar o motivo, é meu jeito. Acho que seria preciso um
domador de cabra pra domar uma capricorniana que nem eu.”
universidade, personagem
O estudo auxiliou Natália na sua modelagem
interna, na sua sensibilidade. “Pra mim, até um sofrimento brutal pode ser
visto como arte.” Durante pouco mais de um ano, ela cursou uma faculdade de
Teatro em Belém, na UFPA. Trancou o curso porque achou que era o momento de turistar
entre a Bolívia e o Peru, no lago Titicaca. A consequência é que essas
experiências itinerantes, junto com a graduação de Teatro, delinearam em
Natália um espírito livre e artístico.
Um espírito que em determinado momento precisou
criar uma categoria específica de escudo, ou seja, uma personagem. “Enquanto eu
toco xilofone na rua, quem as pessoas enxergam é minha personagem”, diz e
mantém o semblante sério. O eco dessa fala revela uma autoconsciência madura,
algo que resguarda Natália, que a protege contra certas angústias da realidade.
Até porque a personagem (diferente da mãe sem a guarda do filho pequeno) está
sempre forte para olhar os vilões nos olhos.
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