sexta-feira, 4 de outubro de 2019

*matéria 6


Jones, às 19h30

O operador cinematográfico e o cinema não comercial



As certezas que nutrimos. Jones Paulo Rodrigues da Silva, 66, não tem dúvidas: Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore, poderia ser a história da sua vida. No filme, Totó é um coroinha italiano que, sabiamente, troca a igreja pela saleta de projeção do cinema local. É ali que ele conhece o projecionista Alfredo, cujo amor pela atividade será uma fagulha para o menino Totó. Uma fagulha e um destino.

O destino de Jones, em Caxias do Sul, ocorre sempre em horário único, às 19h30. Quintas, sextas, sábados e domingos são os dias em que a Sala de Cinema Ulysses Geremia roda o filme da vez, com Jones/Totó na função de operador cinematográfico. “Prefiro essa denominação a projecionista, mas tu pode usar qualquer uma para descrever o meu cargo.”

 

Caxias cultural,

Caxias farmacoautomotiva

 

Alberto Nora, com um envolvimento de tutor, foi quem ensinou a Jones os truques da projeção e os métodos para substituir um rolo, lá pelo ano de 1966 outros tempos, outras prioridades na cidade. Após dominar as técnicas do ofício, Jones teve a chance de trabalhar em dois cinemas clássicos de Caxias, no Cine Imperial e no Cine Ópera.

Cine Ópera, hoje um estacionamento vertical de seis ou sete andares. Cine Imperial, hoje uma farmácia de manipulação. Remodelagens arquitetônicas que dizem muito sobre a cidade e os tipos de preferência que ela elegeu para si — os carros em vez das viagens íntimas ao imaginário, os remédios em vez dos baratos cerebrais que uma sala de projeção sempre oferece.  

 

formação afetiva, cinema de arte

 

Quando jovem, Jones aprendeu a gostar dos faroestes norte-americanos, o leste em direção ao oeste mítico, os caubóis em direção às planícies Navajo. E gostava de Charlie Chaplin, das suas expressões faciais, de tudo o que o personagem Carlitos conseguia dizer sem pronunciar. Mas o filme que marcou a juventude de Jones foi A Tulipa Negra, com Alain Delon, adaptação do livro de Alexandre Dumas.

 “Desde 1993, depois que parei de trabalhar nos cines comerciais, acho que eu entrei num cinema de shopping só umas três vezes”, Jones diz. Em contraposição aos blockbusters, ele aprendeu a estimar o cinema de arte, aquele que se preocupa menos com efeitos especiais e mais com a fotografia, com o som, com os ângulos da câmera e com as subjetividades das histórias. “É uma proposta bem diferente, a gente começa a exigir mais daquilo que assiste.”

 

18 anos, não mercantil

 

Neste mês de outubro, a Sala de Cinema Ulysses Geremia completa 18 anos de resistência. Jones esteve presente desde o início, desde que a ex-secretária da Cultura (Tadiane Tronca) se mexeu e colocou a sala para funcionar. “Se depender da bilheteria, esse cinema vai fechar logo, o nosso foco aqui é outro”, Jones advertiu Tadiane, como que dizendo no subtexto que a importância da arte crítica deveria estar sempre acima do ganho monetário, da venda de pipocas.

Os filmes da Sala Ulysses Geremia rodam em blu-ray. E são selecionados pela sua qualidade estética e artística, não pelo afã recreativo que existe na maioria dos longas de shopping center. “Nada contra o dinheiro e o entretenimento, eles fazem parte”, diz Jones, “mas a gente tem que reconhecer as outras qualidades que também estão por aí.”

 

Bacurau, resistir

 

Nesta semana, no único cinema alternativo de Caxias do Sul, Bacurau está em cartaz, via Jones. Talvez seja o filme nacional mais importante de 2019, porque estético-crítico-reflexivo do apagar ao acender das luzes. E o mistério bom, explica Jones, é que, além de Bacurau ser arte confrontadora, é também vendaval de público — sessões lotadas em todo o Brasil, inclusive com salva de palmas no fim das projeções.  

Os heróis que às vezes não percebemos. Há 18 anos Jones está naquela saleta miúda atrás da plateia, feito o menino Totó do Cinema Paradiso de Tornatore, solitário na sua função, solitário numa cidade que gosta de substituir cinemas por estacionamentos e farmácias, Jones apertando o play e sendo (talvez sem perceber) alguém que resiste forte, o Bacurau caxiense que reconhece a História e a Arte, jamais virando as costas para a cultura, para a inteligência, para a sensibilidade, jamais se esquecendo de enxergar.  

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