O
operador cinematográfico e o cinema não comercial
As certezas que nutrimos. Jones
Paulo Rodrigues da Silva, 66, não tem dúvidas: Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore, poderia ser a história da
sua vida. No filme, Totó é um coroinha italiano que, sabiamente, troca a igreja
pela saleta de projeção do cinema local. É ali que ele conhece o projecionista
Alfredo, cujo amor pela atividade será uma fagulha para o menino Totó. Uma
fagulha e um destino.
O destino de Jones, em Caxias
do Sul, ocorre sempre em horário único, às 19h30. Quintas, sextas, sábados e
domingos são os dias em que a Sala de Cinema Ulysses Geremia roda o filme da
vez, com Jones/Totó na função de operador cinematográfico. “Prefiro essa
denominação a projecionista, mas tu pode usar qualquer uma para descrever o meu
cargo.”
Caxias cultural,
Caxias farmacoautomotiva
Alberto Nora, com um
envolvimento de tutor, foi quem ensinou a Jones os truques da projeção e os
métodos para substituir um rolo, lá pelo ano de 1966 — outros tempos, outras
prioridades na cidade. Após dominar as técnicas do ofício, Jones teve a chance
de trabalhar em dois cinemas clássicos de Caxias, no Cine Imperial e no Cine
Ópera.
Cine Ópera, hoje um
estacionamento vertical de seis ou sete andares. Cine Imperial, hoje uma
farmácia de manipulação. Remodelagens arquitetônicas que dizem muito sobre a
cidade e os tipos de preferência que ela elegeu para si — os carros em vez das viagens íntimas ao imaginário, os remédios
em vez dos baratos cerebrais que uma sala de projeção sempre oferece.
formação afetiva, cinema de arte
“Desde 1993, depois que parei de trabalhar nos
cines comerciais, acho que eu entrei num cinema de shopping só umas três vezes”,
Jones diz. Em contraposição aos blockbusters, ele aprendeu a estimar o cinema
de arte, aquele que se preocupa menos com efeitos especiais e mais com a
fotografia, com o som, com os ângulos da câmera e com as subjetividades das
histórias. “É uma proposta bem diferente, a gente começa a exigir mais daquilo
que assiste.”
18 anos, não
mercantil
Neste mês de outubro, a Sala de Cinema Ulysses
Geremia completa 18 anos de resistência. Jones esteve presente desde o início,
desde que a ex-secretária da Cultura (Tadiane Tronca) se mexeu e colocou a sala
para funcionar. “Se depender da bilheteria, esse cinema vai fechar logo, o nosso
foco aqui é outro”, Jones advertiu Tadiane, como que dizendo no subtexto que a
importância da arte crítica deveria estar sempre acima do ganho monetário, da
venda de pipocas.
Os filmes da Sala Ulysses Geremia rodam em
blu-ray. E são selecionados pela sua qualidade estética e artística, não pelo
afã recreativo que existe na maioria dos longas de shopping center. “Nada
contra o dinheiro e o entretenimento, eles fazem parte”, diz Jones, “mas a
gente tem que reconhecer as outras qualidades que também estão por aí.”
Bacurau, resistir
Nesta semana,
no único cinema alternativo de Caxias do Sul, Bacurau está em cartaz, via Jones. Talvez seja o filme nacional
mais importante de 2019, porque estético-crítico-reflexivo do apagar ao acender
das luzes. E o mistério bom, explica Jones, é que, além de Bacurau ser arte confrontadora, é também vendaval de público — sessões lotadas em todo o Brasil, inclusive com salva de
palmas no fim das projeções.
Os heróis que às vezes não percebemos. Há 18 anos
Jones está naquela saleta miúda atrás da plateia, feito o menino Totó do Cinema Paradiso de Tornatore, solitário
na sua função, solitário numa cidade que gosta de substituir cinemas por
estacionamentos e farmácias, Jones apertando o play e sendo (talvez sem perceber)
alguém que resiste forte, o Bacurau
caxiense que reconhece a História e a Arte, jamais virando as costas para a
cultura, para a inteligência, para a sensibilidade, jamais se esquecendo de
enxergar.
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