O
sonho contemporâneo (e às vezes perigoso) de empreender
No cinema norte-americano, quem
sorri o dia inteiro é o personagem Coringa. Na realidade brasileira, é o
vendedor informal. “O importante é sorrir”, diz Jovane Cassafuz, 24, “senão o
cliente não estabelece contato.” De segunda a sábado, nove horas por dia, ele
vende paçocas em Caxias do Sul — e exibe
o cartaz que sintetiza a sua filosofia trabalhista. Jovane faz isso principalmente
nas paradas de ônibus, local tático, já que os clientes potenciais não podem
apressar o passo nem fingir que não estão enxergando as paçocas que ele oferece:
3 por R$ 2.
interesse, necessidade
Jovane é são-borjense e, devido
à geografia fronteiriça de lá, nunca se esqueceu de prestar atenção na
Argentina, “minha bisavó era castelhana”. Em São Borja, ele aprendeu a mexer
com música eletrônica, interesse lúdico que pegou dos primos. Chegou inclusive
a, como se diz, pilotar a mesa de certas festas, selecionando batidas dançantes
que faziam os braços da pista se hastearem.
Jovane aperfeiçoou esse lado
musical na PUC de Porto Alegre. Durante o curto período em que viveu na
capital, conseguiu lutar por espaço num curso de música clássica. “Quem quer ser
produtor musical precisa estudar, e a música clássica é o berço de tudo.” Porém
hoje a musicalidade de Jovane anda meio recolhida, muda, pois quem paga as
contas em casa é a venda de paçocas.
empreender, apreender
Para
empreender — Jovane está ciente —, é preciso antes apreender, assimilar as
técnicas e os truques da administração. Ele chegou a entrar num curso superior,
mas precisou abrir mão da atmosfera universitária por razões financeiras. O que
Jovane conseguiu fazer até a última lição foi um curso no SEBRAE, travessia que
lhe ensinou algumas compreensões básicas sobre o comércio.
religião,
monarquia
Jovane conta que, por dois ou três meses,
frequentou de modo assíduo a igreja de São Pelegrino, “fiz parte do apostolado
da oração”. Nos encontros, o empreendedorismo dele cedia lugar ao sagrado
coração de Jesus, cujos batimentos não abrangiam o comércio e o lucro — ocasiões então para que Jovane fortalecesse também sua humildade, sua
parcela filantrópica.
Em relação à política atual, numa mistura de
brincadeira e seriedade, Jovane conta que admira o sistema da monarquia. “É
mais original.” Sorrindo, cita a rainha Elisabeth e diz que as coisas são mais
fáceis quando apenas uma pessoa toma as decisões. Sorrindo uma oitava acima,
ele revela que não gosta muito de acompanhar o desenrolar político nacional, não
tem essa fé, “em 24 anos, nunca votei”.
tempos modernos
Como se sabe, em 1936, os Tempos Modernos de Chaplin já antecipavam o perigo da alienação
dentro do trabalho, o perigo de apertarmos um parafuso sem que entendamos ao
certo o motivo para isso. Chaplin, desprovido de microfones e megafones, fez
uma crítica social e política — insuficiente para que o
mundo conseguisse escapar da armadilha.
Nos tempos modernos
atuais, as armadilhas se diversificaram. E elas gostam de usar disfarces cativantes.
Jovane está consciente das ameaças da informalidade, da precarização das
condições trabalhistas, “eu sei que aqui fora eu não tenho garantia de muita
coisa.” Empreender (o verbo da vez, o verbo tão usado em palestras TED) está
longe de possuir uma definição absoluta. Resolver-se
a praticar; tentar, afirma o dicionário Michaelis. Só que o Michaelis lava
as mãos e não menciona os perigos ao redor dessas palavras.
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