domingo, 27 de outubro de 2019

*matéria 7


Jovane coloca no papel

O sonho contemporâneo (e às vezes perigoso) de empreender



No cinema norte-americano, quem sorri o dia inteiro é o personagem Coringa. Na realidade brasileira, é o vendedor informal. “O importante é sorrir”, diz Jovane Cassafuz, 24, “senão o cliente não estabelece contato.” De segunda a sábado, nove horas por dia, ele vende paçocas em Caxias do Sul — e exibe o cartaz que sintetiza a sua filosofia trabalhista. Jovane faz isso principalmente nas paradas de ônibus, local tático, já que os clientes potenciais não podem apressar o passo nem fingir que não estão enxergando as paçocas que ele oferece: 3 por R$ 2.

 

 interesse, necessidade

 

Jovane é são-borjense e, devido à geografia fronteiriça de lá, nunca se esqueceu de prestar atenção na Argentina, “minha bisavó era castelhana”. Em São Borja, ele aprendeu a mexer com música eletrônica, interesse lúdico que pegou dos primos. Chegou inclusive a, como se diz, pilotar a mesa de certas festas, selecionando batidas dançantes que faziam os braços da pista se hastearem.

Jovane aperfeiçoou esse lado musical na PUC de Porto Alegre. Durante o curto período em que viveu na capital, conseguiu lutar por espaço num curso de música clássica. “Quem quer ser produtor musical precisa estudar, e a música clássica é o berço de tudo.” Porém hoje a musicalidade de Jovane anda meio recolhida, muda, pois quem paga as contas em casa é a venda de paçocas.

 

empreender, apreender

 

“Eu quero ir atrás da liberdade financeira”, diz. E para isso cita o livro Pai Rico e Pai Pobre, de Robert Kiyosaki, cujos preceitos advertem para a importância do traçamento de objetivos. Jovane usa para si a metáfora da visão, da luz, “sem objetivos, é como andar cego por aí”. Quem também o inspira é o autor best seller Mario Cortella, “por causa das palavras de coragem e desafio”.

Para empreender Jovane está ciente , é preciso antes apreender, assimilar as técnicas e os truques da administração. Ele chegou a entrar num curso superior, mas precisou abrir mão da atmosfera universitária por razões financeiras. O que Jovane conseguiu fazer até a última lição foi um curso no SEBRAE, travessia que lhe ensinou algumas compreensões básicas sobre o comércio.

 

religião, monarquia

 

Jovane conta que, por dois ou três meses, frequentou de modo assíduo a igreja de São Pelegrino, “fiz parte do apostolado da oração”. Nos encontros, o empreendedorismo dele cedia lugar ao sagrado coração de Jesus, cujos batimentos não abrangiam o comércio e o lucro — ocasiões então para que Jovane fortalecesse também sua humildade, sua parcela filantrópica.

Em relação à política atual, numa mistura de brincadeira e seriedade, Jovane conta que admira o sistema da monarquia. “É mais original.” Sorrindo, cita a rainha Elisabeth e diz que as coisas são mais fáceis quando apenas uma pessoa toma as decisões. Sorrindo uma oitava acima, ele revela que não gosta muito de acompanhar o desenrolar político nacional, não tem essa fé, “em 24 anos, nunca votei”.  

 

tempos modernos

 

Como se sabe, em 1936, os Tempos Modernos de Chaplin já antecipavam o perigo da alienação dentro do trabalho, o perigo de apertarmos um parafuso sem que entendamos ao certo o motivo para isso. Chaplin, desprovido de microfones e megafones, fez uma crítica social e política — insuficiente para que o mundo conseguisse escapar da armadilha.

Nos tempos modernos atuais, as armadilhas se diversificaram. E elas gostam de usar disfarces cativantes. Jovane está consciente das ameaças da informalidade, da precarização das condições trabalhistas, “eu sei que aqui fora eu não tenho garantia de muita coisa.” Empreender (o verbo da vez, o verbo tão usado em palestras TED) está longe de possuir uma definição absoluta. Resolver-se a praticar; tentar, afirma o dicionário Michaelis. Só que o Michaelis lava as mãos e não menciona os perigos ao redor dessas palavras. 


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