moradores de rua de Caxias do Sul
Embora possua título eleitoral,
Eduardo de Almeida Cardoso, 25, não votou nas últimas eleições. “Acho chato
esse negócio”, diz. E não sabe de cabeça o nome do prefeito de Caxias, tampouco
que atualmente Daniel Guerra está governando sem um vice – fato de difícil
entendimento até para as pessoas que têm endereço fixo. De política, Eduardo
compreende apenas que Bolsonaro é o novo presidente. “Escuto o nome dele toda
hora na rua, é famoso que nem ator de novela.” Uma novela com mocinhos e vilões
ainda muito misturados.
Se a atualização política de
Eduardo é limitada, se a memória se atrapalha ao nomear o prefeito caxiense, o
mesmo não vale para o senso de sobrevivência que ele edificou para si com
autodidatismo. Faça mormaço ou faça frio, seja dia útil ou fim de semana, a
vida dele acontece sempre a céu aberto, caminhando pelos bairros São Pelegrino,
Marechal Floriano e Centro. Uma rotina desprovida de qualquer privacidade,
espécie de Big Brother sem câmeras e sem glamour midiático. No BBB anônimo de
Eduardo, não existe prêmio de um milhão de reais para o vencedor.
o destino escorregadio e diabético
“Nasci em São Francisco de
Paula e vim pra Caxias com dois anos. Tenho quatro irmãs e cinco irmãos.” Todos,
exceto ele, moram fora das ruas, o que infla Eduardo de orgulho. “Minha
carteira de identidade tá na casa de uma das minhas irmãs”, tal como a carteira
de motorista, que agora em 2019 está vencida. “Já tive carro uma vez, um
Astra”, diz e olha para cima, talvez acionando lembranças do breve período em
que ele fez parte da sociedade que consome. Hoje, para Eduardo, consumo se transformou em com sumo aperto.
Na véspera da adolescência, a pregada
de peça dupla do destino. O pai, Darci Antônio Cardoso, escorregou em cima do
telhado e caiu de ponta-cabeça no vão entre a casa e o muro, sem chance de sobreviver.
Pouco depois, a diabete venceu a resistência abatida da mãe, Venira de Almeida.
Eduardo conta isso com uma voz sedativa, como quem se preocupa em tranquilizar
o ouvinte. “A gente se virou com a ajuda de alguns tios.” Explica também que estudou
até a sexta série: quatro repetições seguidas fizeram com que ele desistisse.
Essa jornada estudantil aconteceu nas escolas Apolinário, Aquilino Zatti e Alfredo
Belizário Peteffi. O sonho futuro dele tinha a ver com advocacia e escritório, só
que o futuro precisou se arranjar sem sonho.
a vida social/amorosa
Eduardo não perde tempo com
grupos de WhatsApp, assim como nunca se sente obrigado a dar likes no Instagram nem a postar stories exibindo os pratos de R$ 1 que come
no Restaurante Popular – para isso seria preciso ter um celular multimídia. Mas
ele já foi ativo no Facebook por um tempo, até perder a vontade. “Faz uns cinco
anos que eu não entro numa lan house.”
Ainda que sejam
invisíveis para muitas pessoas, os moradores de rua enxergam uns aos outros. E
gostam de namorar. Eduardo se relaciona com mulheres que, como ele, estão em
situação de precariedade social. O desafio é achar um canto privativo que
ofereça certa liberdade de movimento. “Nos albergues a gente não pode, tem que dar
um jeito aqui fora”, diz e pisca. Eduardo conta que já viu relações
homoafetivas entre os sem-teto. E declara respeitar as escolhas alheias –
opinião confirmatória de que, em relação à sexualidade, quem vive à margem desenvolve
menos o cacoete de fazer julgamentos hostis.
Às vezes, quando resolve
tirar uma folga da tarefa de pedir moedas nos semáforos, Eduardo caminha até a
praça Dante e observa os pombos, “é bom pra desvirtuar um pouco a mente”. Segundo
ele, Caxias do Sul é uma cidade boa. “Melhor que Porto Alegre. Morei lá dois
anos com um primo, no morro da Tuca.” Então retomou sua rotina de mendicância na
Serra. A seu modo e de uma forma até meio literária, Eduardo encontrou aqui a
Terra da Cocanha, descrita por José Clemente Pozenato, dove chi manco lavora piú
guadagna.
contradições, bruxarias, filhos e facadas
Talvez a maior
contradição de Eduardo seja o fato de que, apesar de frequentar diariamente as
áreas de reciclagem ao lado do estádio da SER Caxias, ele torce para o
Juventude. “Meu pai era do Ju e eu peguei dele, a gente ia ver jogo quando eu
era criança.” Hoje, não vai mais ao Alfredo Jaconi, mas dentro do possível acompanha
os resultados e se permite até mesmo caçoar o rival Caxias.
Se a vida realmente imitasse
a arte, Eduardo teria uma varinha de condão cheia de bruxarias – Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban
é seu filme predileto, visto muitas vezes graças ao DVD de uma das sobrinhas.
Além de tio, Eduardo também é pai, tem um filho de sete anos. “O nome dele é Wiliam
e ele mora lá no bairro Vila Lobos.” De acordo com a contagem paterna, faz três
ou quatro anos que eles não se encontram, por motivos que não são revelados.
Provavelmente seja o ponto mais sensível de Eduardo, já que evita dar
seguimento ao assunto. Sem fingir uma polidez forçada, faz um comentário
lateral e muda a direção das palavras.
“Sou espírita, o
espiritismo me salvou da morte uma vez”, confessa, embora não frequente centros
espíritas nem pregue a doutrina. Ele sustenta com firmeza que essa fé o salvou em
pelo menos uma ocasião: Eduardo levou duas facadas de raspão na cabeça, quando foi
confundido com um assaltante. E precisou levar sete pontos. “Mas depois a
confusão foi desfeita, eu nunca roubei ninguém”, diz e aguarda com os olhos
algum gesto de cumplicidade, o que revela um lado mais frágil, carente de
legitimação.
o horizonte lá de fora e o horizonte
caxiense
Observando Eduardo com
atenção, sua aparência atual lembra a de Alexander Supertramp, o personagem
real do livro Na Natureza Selvagem, cujo
autor é o jornalista Jon Krakauer – livro que virou filme. Vale lembrar que o
jovem Supertramp, instigado pelos escritos de Jack London (lendário escritor/etnógrafo
norte-americano), largou voluntariamente as práticas da sociedade para virar
mais um dos hobos, como eram
conhecidos os que vagueavam sem destino e sem dólares no bolso.
Corta para Caxias do Sul
e temos aqui o nosso próprio Supertramp contemporâneo, alheio aos nomes de quem
é quem lá dentro da prefeitura, alheio às decisões burocráticas e por vezes
esfíngicas da Pérola das Colônias. Na cidade dos veículos ostentosos, das
sacadas fechadas e do endeusamento metalmecânico, Eduardo se vira com papelão e
retalhos de uma lona quase sem cor.
Que bela e pungente reportagem! Um dos invisíveis, um dos que habitam cada vez mais as ruas das nossas cidades, mostrado em toda sua realidade humana...baita texto, Mantovani!
ResponderExcluirValeu, Tiago!
ResponderExcluirParabéns. Muito legal o texto.
ResponderExcluirValeu, Erbes!
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