terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

*conto 1

meu conto faz parte do livro Não Culpe o Narrador (Porto Alegre: Class, 2018), coletânea organizada por Ana Luiza Rizzo e Irka Barrios.

Aquele risco violeta, meio roxo
                                
A África é a estreia 
do Homo Sapiens. 
(cartaz num poste 
de Joal-Fadiout)

a.

Em maio agora faz três anos que estamos aqui no Brasil, mas a sensação em nós é de mais tempo. Nossa cidade lá no Senegal se chama Joal-Fadiout. O fato curioso é que esse tracinho no meio de Joal-Fadiout é uma ponte de verdade. Joal fica na extensão do continente, enquanto Fadiout forma uma ilha cheia de telhados beges e cinzas. Mais ou menos 45 mil habitantes. O primeiro presidente do Senegal nasceu lá.

Três anos no Brasil e ainda não conseguimos aprender bem o português. Até porque Malick, Ousmane, Faraji e eu temos o hábito de conversar só com outros imigrantes senegaleses, como se continuássemos vivendo em Joal-Fadiout. É por isso que as palavras que estão aqui foram originalmente escritas em francês seria difícil escrevermos com naturalidade na língua do Brasil. O que fizemos foi procurar uma escola de idiomas e dizer que precisávamos de um tradutor. Escola Instituto Roche, na Ramiro Barcelos. Explicamos a ideia do nosso texto, o convite da Ana Luiza, a inesperada chance de participarmos de uma coletânea de contos.

 

b.

Moramos num apartamento de dois quartos na zona norte de Porto Alegre, bairro Passo D'Areia. O destino inicial era Caxias do Sul, mas acabamos trocando na última hora essa passagem sozinha daria um livro. No geral, as pessoas olham para nós e acham que a única coisa que sabemos fazer é comercializar itens na rua. Lenços. Malhas. Panos de prato. E temos certeza que algumas pensam que somos analfabetos, já que gaguejamos no português.

Lá no Senegal existem vários dialetos. O principal é o wolof, que prevalece na televisão e no rádio, dominando inclusive a capital Dakar. A sonoridade do wolof é bonita. Jërëjëf significa “obrigado”. Taalata é “terça-feira”. As línguas árabe e francesa também fazem parte do nosso cotidiano: tanto na oralidade quanto na escrita. Somos alfabetizados. 

          

c.

Malick é o único de nós quatro que já morou na Europa. Itália. Primeiro em Nápoles (oito meses) e depois Verona (um ano). Como não podia trabalhar legalmente no setor de telefonia, que é sua especialidade desde sempre, começou a vender souvenir ao redor de pontos turísticos. Malick ficou bastante conhecido na cidade de Verona pelo menos entre a comunidade senegalesa que vive lá. Isso porque em certo momento Malick teve a cara de pau negra de querer algo diferente. É famosa a história de quando ele (aos 27 anos) quis fazer um teste no time de futebol chamado Hellas Verona. Imagina só, um time profissional que disputava a primeira divisão do campeonato italiano. Que sonho. Claro que os italianos não deixaram Malick entrar em nenhum treino. 

Mas ele entrou sim para a lista de fofocas senegalesas em Verona. A notícia se espalhou entre os nossos como pó na ventania. Malick, o jogador. Malick, o injustiçado. Existe até uma foto de celular do instante exato em que ele, após ter sido barrado na secretaria do estádio, deu as costas e voltou cabisbaixo ao realismo da vida não sabemos em qual celular ficou armazenada essa foto. A verdade é que o futebol ocupa um lugar respeitado e até meio místico dentro de nós quatro.

 

d.   

Daqui um mês e pouco vai começar a Copa do Mundo 2018 na Rússia. A seleção do Senegal está dentro (Malick queria muito o Senegal no grupo da Itália, só que a Itália não conseguiu vaga na Copa, que pena). Fazendo uma conta nos dedos, é bem provável que, no dia em que este texto estiver enfim traduzido e for publicado, já saberemos qual seleção conquistou o título ou talvez por sorte a publicação saia ainda durante os jogos, quando as chances de todos os países continuarem vivas. No fundo, não temos a esperança tola de vencer a Copa. Esperança é um sentimento que hoje em dia nutrimos só em relação aos assuntos pessoais, em relação a nossa própria caminhada. Embora nós quatro torçamos bastante pela seleção do Senegal, torcemos mais forte por nós mesmos, já que temos nossas Copas do Mundo particulares aqui no Brasil.   

Mas é óbvio que seria lindo se nosso país levantasse o troféu máximo do futebol. A primeira seleção africana campeã do mundo, que rótulo para a sociedade senegalesa. O intrigante é que não conseguimos imaginar quais seriam as consequências imediatas dessa conquista. Será que o Senegal começaria a receber atenções e investimento estrangeiro, uma multinacional, um escritório da ONU? Será que a República do Senegal passaria a ser estudada nas salas de aula dos Estados Unidos?

 

e.

Malick, Ousmane, Faraji e eu não somos irmãos nem primos. Crescemos próximos uns dos outros em Joal-Fadiout. Tão próximos que às vezes dava para escutar em uníssono o que acontecia nas quatro moradias os sons da vida africana, para o bem e para o mal. O que temos em comum é que os pais de cada um de nós se casaram com mais de uma mulher. Traço étnico da nossa terra. Por exemplo, o pai de Ousmane tem três esposas, todas vivendo na mesma casa de telhado bege na ilha de Fadiout. Sempre que Ousmane tenta explicar para os brasileiros essa característica senegalesa, ele é interpretado de modo errado. E escuta piadas fora de contexto.  

Aqui no Brasil não pensamos muito em casar, pelo menos não agora, talvez no futuro. O que pouca gente conhece é que, para um senegalês poder oficializar o matrimônio, os pais do noivo e da noiva precisam aprovar a união e dar o ok final para nós é importante o consenso da família. Em Porto Alegre sabemos de alguns senegaleses que já estão casados com mulheres brasileiras. Tendo adquirido até casa própria e carro e tudo mais. Isso é bom para toda comunidade de imigrantes africanos, uma vez que ajuda a diminuir o preconceito contra nós. A África sofre preconceito.

 

f. 

O Brasil é um país que manteve a escravidão de negros por mais de 300 anos. Nós lemos sobre isso na internet. E a totalidade dos escravos que foram trazidos para cá partiram da costa oeste africana. O Senegal fica na costa oeste africana. Pensando agora a respeito do que aconteceu na vida dos nossos antepassados, sentimos uma mistura de tristeza e desencanto. Mas não raiva. Nem aversão de quem os escravizou — tanto que escolhemos viver aqui no Brasil, no país que violou nossos ancestrais africanos por mais de 300 anos. Não sentimos nem raiva nem aversão porque sabemos que a conjuntura mundial era diferente. 

Cerca de vinte dias atrás, ali numa das laterais da rodoviária, um homem branco se postou em nossa frente e, com rinchos e ulos, começou a fazer uma paródia grosseira do dialeto senegalês que usamos entre nós. Foi uma provocação em tom de zombaria, algo hostil e desrespeitoso, como se fôssemos seres monossilábicos recém-saídos da savana. É um exemplo do preconceito que às vezes sofremos aqui em Porto Alegre, preconceito de um grupo de pessoas que nos julgam analfabetos. Mas a verdade é que não temos ressentimento, não nos incomodamos com o fato de nos classificarem como homens sem letras. Se quiséssemos, poderíamos escrever sobre a escravidão em francês, em árabe, em dialetos africanos e (alguns de nós) inclusive em inglês.

 

g.

Faraji está saindo com uma mulher porto-alegrense. Não chega a ser namoro, ele diz. Estão se conhecendo aos poucos. A parte engraçada (engraçada para nós homens senegaleses) é que, durante o primeiro encontro deles, essa mulher levou Faraji de carro para um quarto que tinha cinco espelhos, banheira de hidromassagem e um teto que abria com controle remoto. Sem falar na cama redonda de lençol vermelho-sangue, que fez Faraji se descobrir um personagem de As mil e uma noites.

Logo que chegamos ao Brasil em 2015, a primeira coisa que estranhamos foi enxergar casais de namorados se beijando em espaços públicos. Beijo de língua, sem constrangimento. Em praças, shopping centers, no Parque da Redenção e na Usina do Gasômetro. Essa troca de intimidade nos ambientes coletivos é impossível de acontecer lá no Senegal não que seja certo ou errado, é apenas uma diferença cultural. Somos mais discretos, quem sabe por causa da nossa herança servil.

Nós quatro já lemos As mil e uma noites. Não é uma história de origem africana. Ela vem de lendas árabes, indianas e persas. No enredo, o rei Xariar é traído pela sua primeira esposa e, a partir dessa traição, a trama do livro ganha desenvolvimento recomendamos a leitura. O que nosso amigo Faraji nos contou foi que, naquela noite com a mulher porto-alegrense, quando ele estava à vontade na cama redonda de lençol vermelho-sangue, não parou de pensar na traição da primeira esposa do rei de As mil e uma noites. Não parou de pensar que a esposa do rei cometera adultério justamente com um escravo. Um escravo.

 

h.

No dia em que recebemos o convite da Ana Luiza para escrevermos estas linhas, estávamos perto do viaduto da Borges. Era uma sexta de céu fechado, logo após a hora do almoço. Ainda não tínhamos vendido nada à tarde. Foi quando ela apareceu do lado direito (não a conhecíamos) e escolheu três pares de meias coloridas, de lã, totalizando R$ 15. Havia educação e afetuosidade no jeito dela, como se fosse alguém do serviço de proteção aos imigrantes. Malick fez a cobrança e pediu se a cliente não tinha uma nota menor as notas de R$ 50 sempre complicaram nosso troco. Para surpresa de nós quatro, a cliente se apresentou e disse que podíamos ficar com a quantia que havia sobrado. Malick, em dúvida, virou-se para o resto de nós com olhos de impasse. Mas demos consentimento, balançando positivamente nossas cabeças. Então Ana Luiza nos explicou os detalhes do seu projeto. “Uma coletânea de contos sobre os países que vão jogar a Copa do Mundo na Rússia, vocês querem escrever sobre o Senegal?” É impossível dizer se ela fez o convite na intuição ou se já estava com o plano pronto na cabeça. “Essa é uma iniciativa dos alunos do escritor Assis Brasil”, Ana Luiza completou. Não fazíamos ideia de quem era Assis Brasil, mas pelo sobrenome nacional só podia ser alguém importante para o país. “Aceitamos”, dissemos no nosso português possível, sentindo no sangue uma fusão de felicidade e desafio. Existem pessoas que sabem que somos alfabetizados.

 

i.

Malick, Ousmane, Faraji e eu gostamos de dizer que o futebol ocupa um lugar meio místico dentro de nós, dentro da nossa percepção de identidade. Mas não tem nada a ver com a Copa do Mundo 2018 na Rússia é algo mais primário do que isso, mais íntimo. Ao longo da nossa infância/adolescência em Joal-Fadiout, o futebol foi para nós uma espécie de capacitação de sentimentos, capacitação para tudo o que encontraríamos em nossas futuras vidas de homens feitos.

Receio, atrevimento, susto, improviso, desespero, paixão, covardia, ímpeto, risco, derrota, fé, inevitabilidade. Tudo isso o futebol trabalhou devagar em nossa índole, lance a lance, partida a partida. Lembramos com carinho de certas passagens. Por exemplo, lá em Joal-Fadiout existe um cemitério misto que abriga em harmonia tanto muçulmanos quanto cristãos, Cimetiere Mixte Musulman Chretien. De acordo com nosso julgamento inocente de crianças-negras-de-pés-descalços, o cemitério era o lugar para onde iam os muçulmanos e os cristãos que eram derrotados nas partidas de futebol. 

Mas não tirávamos isso da nossa criatividade. Havia mitos, folclore, deboche por parte dos mais velhos. Ouvíamos essas ruminações como se estivéssemos diante de palestras sagradas era tudo o que tínhamos ao alcance do imaginário. Pescadores idosos nos reuniam em semicírculo e divulgavam narrativas cheias de fatalidade e drama, de ameaça e profecia. Que época. Olhávamos para as cruzes brancas do cemitério de Joal-Fadiout e aprendíamos cedo sobre as duplicidades da existência senegalesa. Vida e morte. Sorte e azar. Mar e terra. Cristãos e muçulmanos. Mirávamos os rostos afros dos pescadores idosos e, do nosso jeito ainda ingênuo, interpretávamos os ciclos da Mãe África, os ciclos de um povo que nunca teve muita manobra de escolha.

E, em nossos corpos magros de meninos, a ideia chamativa do futebol como pano de fundo para as realidades e irrealidades africanas. Muito varal em nosso entorno. Muita concha de molusco. Muito cheiro de pescado. Acácias, manguezais, baobás. As nuvens carregadas em julho e agosto, as variações sazonais. Pelicanos, hienas, gaivotas. Os ventos do norte e do oeste. Inventávamos campeonatos e ligas regionais, times e divisões. Muito céu em cima. Muito mar ao lado. Muita piroga ancorada esperando pela nova travessia. Cerâmica, turbantes, vestidos estampados. O mercado de peixe e a zona de secagem na parte oriental. Jogávamos nosso futebol cercados pela vida conhecida de Joal-Fadiout, sem desejarmos os ares de outras terras, os portos de homens brancos.  

As partidas às vezes contavam com times cheios, um excesso ruidoso de crianças. Mas em outros momentos éramos obrigados a improvisar jogos de dois contra dois, um contra um. E nessas horas fazíamos uso de nossa fabulação, enxergando torcedores onde só existiam varais com mangas ao vento, enxergando rede de gol onde só havia rede de pesca, enxergando árbitros e técnicos e preparadores físicos onde só havia pescadores hipnotizados pela sua própria subsistência.

         Três anos vivendo no Brasil e já não podemos dizer que continuamos os mesmos quem pode? As circunstâncias brasileiras modificaram nós quatro, sem que no início percebêssemos. Mas ainda que tenhamos incorporado certos hábitos aqui de Porto Alegre, o sentimento em nós é de que nossa africanidade se tornou mais forte, mais autoconsciente. É difícil explicar direito essa impressão. Às vezes observamos o mapa-múndi e é como se o continente africano nos saltasse aos olhos feito um leão insaciável. Nessas ocasiões, o território costeiro do Senegal também adquire uma dimensão bem maior. De área e de significados.

         Talvez soe bobo de nossa parte: o futebol que hoje em dia jogamos ali na margem do Rio Guaíba torna mais viva a noção que temos de nós mesmos. Nos domingos à tarde em que não está chovendo, saímos da zona norte e vamos até a Avenida Beira-Rio, ansiosos por espaço nas partidas improvisadas que acontecem num campo colado ao rio — campinho de terra, sem linha de marcação nas laterais. Noventa por cento de quem joga ali são brasileiros, claro, e além de nós senegaleses também participam alguns haitianos e até um cidadão sírio. Quase uma Copa do Mundo à parte.

         Talvez soe mais bobo ainda: sempre que entramos em campo aqui em Porto Alegre, nós quatro nos cumprimentamos do mesmo jeito que fazíamos antes das partidas de infância em Joal-Fadiout. É uma ritualização antiga que agora (tão longe que estamos da África) imprime em nós um valor diferente, que tem a ver com quem somos, com quem imaginamos ser. A bola dominada em nossos negros pés senegaleses. Muito varal em nosso entorno. Muita concha de molusco. Muito cheiro de pescado. Acácias, manguezais, baobás. E no fim das tardes de domingo, quando a partida ali na margem do Rio Guaíba está terminando, nós gostamos de ver surgir no horizonte aquele risco violeta, meio roxo, que os porto-alegrenses dizem ser o pôr do sol mais bonito do mundo. Cerâmica, turbantes, vestidos estampados. As variações sazonais. O mercado de peixe e a zona de secagem na parte oriental. Muito céu em cima. Muita água ao lado. Muita piroga ancorada esperando pela nova travessia. Todo conjunto de nossas realidades e irrealidades africanas. 


        
a quem interessar possa: entrevista sobre o livro Não Culpe o Narrador
https://www.youtube.com/watch?v=vFU2JzAX4GI

domingo, 24 de novembro de 2019

*matéria 8


Bifurcações

“[...] trilhas de intermináveis bifurcações que uma pessoa precisa

enfrentar quando caminha pela vida.” (AUSTER, 2017, p. 809)



É minha mãe na imagem. 22 anos. Nenhum filho ou filha ainda, nenhum marido. Sua fisionomia moça e seu olhar sereno me sensibilizam de um jeito imprevisto. Enquanto estudo sua foto 3x4, me flagro a percebê-la não só como mãe, não só como alfabetizadora das minhas compreensões. Percebo-a hoje também como amiga de travessia-vida, amiga de futuro-dúvida. E nossas dúvidas, porque as temos bem demarcadas em 2019, nossas dúvidas fazem com que nos reconheçamos aliados para a nova realidade doméstica que se impôs a ela nos últimos tempos.

 

 metatextualidade

 

As limitações textuais. Releio o parágrafo anterior e noto que seria impossível escrevê-lo com isenção, impessoalizando-o. Diferente do que fiz no arranjo das sete matérias anteriores, mexo agora na voz narrativa, substituo de repente a terceira pessoa pela primeira. E já não sei se posso chamar este texto de matéria. Não sei se, em virtude da dicção colada à pessoalidade, me expresso com o distanciamento e a clareza que se exigem de um material jornalístico. Me pego neste momento hesitando tanto na forma quanto no conteúdo. Hesito em falar sobre minha mãe.  

 

destinos, chances

 

 Embaixo do título que dei para esta suposta matéria, como frase de apoio, há um fragmento do romance 4321, de Paul Auster obra finalista do Man Booker Prize 2017. O livro trata das bifurcações (norte-americanas ou brasileiras) que existem nas trajetórias pessoais de todos nós. Paul Auster oferece quatro destinos possíveis ao mesmo personagem, Archie Ferguson. “Imaginar como as coisas podiam ser diferentes.” (p.55)

Eu olho para a fotografia da minha futura mãe, aos 22 anos dela, e sem querer visualizo destinos alternativos para seu caminho, para sua biografia. Se ela fosse a personagem central do livro 4321, quais opções de caminhada lhe seriam oferecidas? Outra cidade? Outros filhos? Se em Veranópolis a ficção tivesse tomado as rédeas do real e colocado minha mãe à mercê da literatura de Paul Auster, será que ele a teria conduzido para longe de mim e da minha irmã, para longe da nossa chance de nascer?

 

maio de 68

 

Na fotografia da minha mãe, além da atmosfera calma e meio hippie, o que chama minha atenção é a data estampada na parte inferior, o maio de 68 simplesmente o mês mais importante do século XX. O mês decisivo. Se os desdobramentos que começaram durante aqueles trinta dias não tivessem acontecido, a consciência cidadã como a conhecemos hoje estaria mais despreparada, inexistiria em nós uma fagulha contestatória pronta para flamejar.

Em maio de 68, a calmaria de Veranópolis não tinha nada a ver com a impetuosidade que se via em Paris. Minha mãe não participou, na Champs-Élysées, das passeatas estudantis que exigiram o fim das posturas conservadoras, o fim do arcaísmo, o fim das negligências sociais e humanas. Ela não esteve lá. Mas, me valendo aqui da lógica literária de Paul Auster, eu observo a imagem jovem da minha mãe e a posiciono com os braços erguidos no maio de 68 parisiense. Vejo pelas ruas seus cabelos soltos, seus olhos insubmissos. Vejo bifurcações.

 

autoimagem, edição

 

No instante em que eu comento algo sobre sua foto 3x4, me surpreendo que minha mãe rebata que na sua juventude ninguém jamais lhe disse que ela era bonita, nem mesmo meu pai condicionado às regionalidades mais ou menos formais do interior gaúcho nas décadas de 60 e 70. As pessoas não verbalizavam os encantos alheios. “Eu achava que era feia”, ela me diz agora e fica à espera de uma restituição, de um ressarcimento elogioso sobre a beleza dos seus 22 anos. Então eu lhe ofereço as palavras atrasadas e, desse modo, que interessante, acabo editando a autopercepção da minha mãe, acabo editando o modo como ela interpreta sua autoimagem. Uma bifurcação retroativa.

 

AUSTER, Paul. 4321. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. 

domingo, 27 de outubro de 2019

*matéria 7


Jovane coloca no papel

O sonho contemporâneo (e às vezes perigoso) de empreender



No cinema norte-americano, quem sorri o dia inteiro é o personagem Coringa. Na realidade brasileira, é o vendedor informal. “O importante é sorrir”, diz Jovane Cassafuz, 24, “senão o cliente não estabelece contato.” De segunda a sábado, nove horas por dia, ele vende paçocas em Caxias do Sul — e exibe o cartaz que sintetiza a sua filosofia trabalhista. Jovane faz isso principalmente nas paradas de ônibus, local tático, já que os clientes potenciais não podem apressar o passo nem fingir que não estão enxergando as paçocas que ele oferece: 3 por R$ 2.

 

 interesse, necessidade

 

Jovane é são-borjense e, devido à geografia fronteiriça de lá, nunca se esqueceu de prestar atenção na Argentina, “minha bisavó era castelhana”. Em São Borja, ele aprendeu a mexer com música eletrônica, interesse lúdico que pegou dos primos. Chegou inclusive a, como se diz, pilotar a mesa de certas festas, selecionando batidas dançantes que faziam os braços da pista se hastearem.

Jovane aperfeiçoou esse lado musical na PUC de Porto Alegre. Durante o curto período em que viveu na capital, conseguiu lutar por espaço num curso de música clássica. “Quem quer ser produtor musical precisa estudar, e a música clássica é o berço de tudo.” Porém hoje a musicalidade de Jovane anda meio recolhida, muda, pois quem paga as contas em casa é a venda de paçocas.

 

empreender, apreender

 

“Eu quero ir atrás da liberdade financeira”, diz. E para isso cita o livro Pai Rico e Pai Pobre, de Robert Kiyosaki, cujos preceitos advertem para a importância do traçamento de objetivos. Jovane usa para si a metáfora da visão, da luz, “sem objetivos, é como andar cego por aí”. Quem também o inspira é o autor best seller Mario Cortella, “por causa das palavras de coragem e desafio”.

Para empreender Jovane está ciente , é preciso antes apreender, assimilar as técnicas e os truques da administração. Ele chegou a entrar num curso superior, mas precisou abrir mão da atmosfera universitária por razões financeiras. O que Jovane conseguiu fazer até a última lição foi um curso no SEBRAE, travessia que lhe ensinou algumas compreensões básicas sobre o comércio.

 

religião, monarquia

 

Jovane conta que, por dois ou três meses, frequentou de modo assíduo a igreja de São Pelegrino, “fiz parte do apostolado da oração”. Nos encontros, o empreendedorismo dele cedia lugar ao sagrado coração de Jesus, cujos batimentos não abrangiam o comércio e o lucro — ocasiões então para que Jovane fortalecesse também sua humildade, sua parcela filantrópica.

Em relação à política atual, numa mistura de brincadeira e seriedade, Jovane conta que admira o sistema da monarquia. “É mais original.” Sorrindo, cita a rainha Elisabeth e diz que as coisas são mais fáceis quando apenas uma pessoa toma as decisões. Sorrindo uma oitava acima, ele revela que não gosta muito de acompanhar o desenrolar político nacional, não tem essa fé, “em 24 anos, nunca votei”.  

 

tempos modernos

 

Como se sabe, em 1936, os Tempos Modernos de Chaplin já antecipavam o perigo da alienação dentro do trabalho, o perigo de apertarmos um parafuso sem que entendamos ao certo o motivo para isso. Chaplin, desprovido de microfones e megafones, fez uma crítica social e política — insuficiente para que o mundo conseguisse escapar da armadilha.

Nos tempos modernos atuais, as armadilhas se diversificaram. E elas gostam de usar disfarces cativantes. Jovane está consciente das ameaças da informalidade, da precarização das condições trabalhistas, “eu sei que aqui fora eu não tenho garantia de muita coisa.” Empreender (o verbo da vez, o verbo tão usado em palestras TED) está longe de possuir uma definição absoluta. Resolver-se a praticar; tentar, afirma o dicionário Michaelis. Só que o Michaelis lava as mãos e não menciona os perigos ao redor dessas palavras. 


sexta-feira, 4 de outubro de 2019

*matéria 6


Jones, às 19h30

O operador cinematográfico e o cinema não comercial



As certezas que nutrimos. Jones Paulo Rodrigues da Silva, 66, não tem dúvidas: Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore, poderia ser a história da sua vida. No filme, Totó é um coroinha italiano que, sabiamente, troca a igreja pela saleta de projeção do cinema local. É ali que ele conhece o projecionista Alfredo, cujo amor pela atividade será uma fagulha para o menino Totó. Uma fagulha e um destino.

O destino de Jones, em Caxias do Sul, ocorre sempre em horário único, às 19h30. Quintas, sextas, sábados e domingos são os dias em que a Sala de Cinema Ulysses Geremia roda o filme da vez, com Jones/Totó na função de operador cinematográfico. “Prefiro essa denominação a projecionista, mas tu pode usar qualquer uma para descrever o meu cargo.”

 

Caxias cultural,

Caxias farmacoautomotiva

 

Alberto Nora, com um envolvimento de tutor, foi quem ensinou a Jones os truques da projeção e os métodos para substituir um rolo, lá pelo ano de 1966 outros tempos, outras prioridades na cidade. Após dominar as técnicas do ofício, Jones teve a chance de trabalhar em dois cinemas clássicos de Caxias, no Cine Imperial e no Cine Ópera.

Cine Ópera, hoje um estacionamento vertical de seis ou sete andares. Cine Imperial, hoje uma farmácia de manipulação. Remodelagens arquitetônicas que dizem muito sobre a cidade e os tipos de preferência que ela elegeu para si — os carros em vez das viagens íntimas ao imaginário, os remédios em vez dos baratos cerebrais que uma sala de projeção sempre oferece.  

 

formação afetiva, cinema de arte

 

Quando jovem, Jones aprendeu a gostar dos faroestes norte-americanos, o leste em direção ao oeste mítico, os caubóis em direção às planícies Navajo. E gostava de Charlie Chaplin, das suas expressões faciais, de tudo o que o personagem Carlitos conseguia dizer sem pronunciar. Mas o filme que marcou a juventude de Jones foi A Tulipa Negra, com Alain Delon, adaptação do livro de Alexandre Dumas.

 “Desde 1993, depois que parei de trabalhar nos cines comerciais, acho que eu entrei num cinema de shopping só umas três vezes”, Jones diz. Em contraposição aos blockbusters, ele aprendeu a estimar o cinema de arte, aquele que se preocupa menos com efeitos especiais e mais com a fotografia, com o som, com os ângulos da câmera e com as subjetividades das histórias. “É uma proposta bem diferente, a gente começa a exigir mais daquilo que assiste.”

 

18 anos, não mercantil

 

Neste mês de outubro, a Sala de Cinema Ulysses Geremia completa 18 anos de resistência. Jones esteve presente desde o início, desde que a ex-secretária da Cultura (Tadiane Tronca) se mexeu e colocou a sala para funcionar. “Se depender da bilheteria, esse cinema vai fechar logo, o nosso foco aqui é outro”, Jones advertiu Tadiane, como que dizendo no subtexto que a importância da arte crítica deveria estar sempre acima do ganho monetário, da venda de pipocas.

Os filmes da Sala Ulysses Geremia rodam em blu-ray. E são selecionados pela sua qualidade estética e artística, não pelo afã recreativo que existe na maioria dos longas de shopping center. “Nada contra o dinheiro e o entretenimento, eles fazem parte”, diz Jones, “mas a gente tem que reconhecer as outras qualidades que também estão por aí.”

 

Bacurau, resistir

 

Nesta semana, no único cinema alternativo de Caxias do Sul, Bacurau está em cartaz, via Jones. Talvez seja o filme nacional mais importante de 2019, porque estético-crítico-reflexivo do apagar ao acender das luzes. E o mistério bom, explica Jones, é que, além de Bacurau ser arte confrontadora, é também vendaval de público — sessões lotadas em todo o Brasil, inclusive com salva de palmas no fim das projeções.  

Os heróis que às vezes não percebemos. Há 18 anos Jones está naquela saleta miúda atrás da plateia, feito o menino Totó do Cinema Paradiso de Tornatore, solitário na sua função, solitário numa cidade que gosta de substituir cinemas por estacionamentos e farmácias, Jones apertando o play e sendo (talvez sem perceber) alguém que resiste forte, o Bacurau caxiense que reconhece a História e a Arte, jamais virando as costas para a cultura, para a inteligência, para a sensibilidade, jamais se esquecendo de enxergar.  

domingo, 28 de julho de 2019

*matéria 5


A xilofonista

As realidades de Natália Caroline N. Portilho,

a xilofonista da Av. Júlio



Aquela famosa canção dos anos 60 diz: “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Natália não espera acontecer. E faz doze horas por dia em Caxias do Sul, sempre na esquina da Garibaldi com a Av. Júlio. Seu xilofone tem onze teclas cinzas, pequenas, cujas notas musicais são despertadas pelo toque de uma baqueta. Tudo muito rápido e rítmico. Tudo muito a céu aberto.

Aos pés de Natália, fica posicionado o pote que recebe as moedas e as cédulas — pote mágico, porque é dali que sai todo o sustento dela. Aos 29 anos, Natália constrói a vida entretendo musicalmente os pedestres que se aproximam da sua órbita de calçada. “Eu toco fábulas, poemas, histórias.” E ajuda a culturalizar a avenida de uma cidade que atualmente não dá tanta bola à cultura.

 

água, deslocamentos

 

Natália nasceu em Belém, Pará. A convivência com os pais foi uma história abreviada cujos parágrafos Natália prefere suprimir. O que ela não suprime é o fato de que foi morar nos fundos de um salão de beleza, atenta aos movimentos que aconteciam ao redor. Segundo a narrativa de Natália, sua meninice está marcada por uma atmosfera de extremo valor à pureza, à simbologia da água. “Me lembro dos poços naturais de todo o norte, eu amo água.”

Água combina com fluidez, que combina com deslocamento. Natália já se deslocou bastante pelo Brasil. Na Bahia, encontrou aconchego nas lonas de um circo que era tocado por um senhor francês de nome Paolo. “Eu praticava tecido com uma artista espanhola e aprendi a me apresentar naquela corda suspensa, sabe?” Também foi na Bahia que Natália se deparou com a água dos seus sonhos, na Lapa Doce, Chapada Diamantina. “Eu estava bem selvagem lá”, diz e mostra um sorriso ilimitado.

 

filho, distância

 

Ártico Real Cross Nabucodonosor Portilho é o nome do filho de Natália, menino que hoje tem 4 anos. Essa inspiração nominal respeita uma lógica bem misturada. Ártico vem da questão da limpidez da água, do brilho, da transparência. Real se deve ao fascínio que a mãe sente por tudo o que tem a ver com realeza. Cross foi um pintor pontilhista francês, cuja arte inspira Natália. Nabucodonosor é homenagem ao rei babilônico, à dinastia do poder. E Portilho é o sobrenome original de Natália.

Não faz muito que ela perdeu a guarda do pequeno Ártico — assunto sobre o qual Natália se alonga de modo vulnerável. Por isso, aqui aparece apenas uma espécie de índice da história. 1) Juiz de Caxias interpreta que o estilo de vida da mãe não é o ideal para a criança. 2) Menino é conduzido para um abrigo. 3) A mãe se organiza para reconquistar a guarda do filho. 4) A angústia silenciosa que só é suavizada pelo som do xilofone.

 

sotaques, amores estrangeiros

 

Natália tem um sotaque misturado, de difícil classificação. Sotaque que não é percebido nem como nortista nem como sulista. Isso se deve ao fato de Natália já ter morado em vários lugares (PA, BA, SC, RS, Argentina) e também se relacionado com dois estrangeiros. O namorado francês não marcou tanto assim a vida dela. Mas o sueco Farfar sim. “Ele tinha um cabelo dread que vinha até aqui.” Mesmo hoje, após anos do término, após já não existirem mais notícias dele, Natália diz ainda sentir um ciúme irracional de Farfar. “Não sei te explicar o motivo, é meu jeito. Acho que seria preciso um domador de cabra pra domar uma capricorniana que nem eu.”

 

universidade, personagem

 

O estudo auxiliou Natália na sua modelagem interna, na sua sensibilidade. “Pra mim, até um sofrimento brutal pode ser visto como arte.” Durante pouco mais de um ano, ela cursou uma faculdade de Teatro em Belém, na UFPA. Trancou o curso porque achou que era o momento de turistar entre a Bolívia e o Peru, no lago Titicaca. A consequência é que essas experiências itinerantes, junto com a graduação de Teatro, delinearam em Natália um espírito livre e artístico.  

Um espírito que em determinado momento precisou criar uma categoria específica de escudo, ou seja, uma personagem. “Enquanto eu toco xilofone na rua, quem as pessoas enxergam é minha personagem”, diz e mantém o semblante sério. O eco dessa fala revela uma autoconsciência madura, algo que resguarda Natália, que a protege contra certas angústias da realidade. Até porque a personagem (diferente da mãe sem a guarda do filho pequeno) está sempre forte para olhar os vilões nos olhos.