A
invisibilidade e o preconceito
contra
os homens trans
No início de cada manhã, em vez
do hino nacional brasileiro, as escolas deveriam entoar Shakespeare. “Há mais
coisas no céu e na terra, Horácio, do que sonha a tua filosofia”, diz Hamlet na
cena V do segundo ato. Puxando para hoje, o que a filosofia de Horácio não
consegue captar é que, no mundo dos homens, há várias masculinidades possíveis,
não só a masculinidade fálica.
Até seus 20 anos, Eli se
reconhecia como mulher cisgênero e lésbica. “Mas quando eu dizia isso em alto e
bom tom eu sentia que estava mentindo.” Essa automentira começou a ser desfeita
quando Eli descobriu que existiam homens trans: um território novo e habitável.
Primeiro, pesquisou sobre o que estava sentindo. Depois, entrou em contato com
alguns trans. “Percebi que os sentimentos dessas pessoas e os meus combinavam.”
Porém essa combinação demorou
até se estabelecer. O autoconceito de Eli teve várias configurações até chegar
ao ponto em que se encontra hoje, aos 25 anos: um homem trans. “Passei um
bocado de tempo até aceitar que a identidade da gente deve fluir quando não nos
sentimos confortáveis.” Quem o ajudou (e ainda ajuda) no processo transexualizador
foi a namorada, Beatriz, com quem ele mora no centro de Curitiba.
No seu passado de mulher cis e
lésbica, Eli enfrentou a coleção de preconceitos clássicos. “De ser chamado de
sapatão na rua e a não aceitação da família.” Isso já foi. Em 2019, as
hostilidades contra ele são de outra escala, já que homens trans sofrem
desrespeitos numa dicotomia: ou são tratados com negação ou se tornam um alvo
literal. É seu fado.
lésbica masculina,
homem trans
O primeiro dos termos acima, se
pronunciado com peçonha na saliva, soará ofensivo. Sem peçonha, é um termo usado
até em artigos científicos, dentro dos sentidos das lesbianidades. Dito isso,
surge a pergunta: qual é a fronteira entre uma lésbica masculina e um homem
trans? “A fronteira é a autoidentificação”, diz Eli. Diz ainda que, à medida
que estuda questões sobre sexualidade e gênero, sente-se cada vez mais ligado
às bandeiras que adotou. Bandeiras coletivas. Mas Eli faz questão de realçar
sua singularidade. “Construo minha expressão de gênero de um jeito todo meu,
único.”
O segundo termo do subtítulo é
bem mais vulnerável, inclusive no próprio movimento LGBT. “Falando do T, dentro
do movimento a invisibilidade e o preconceito contra pessoas trans é
aterrorizante”, denuncia Eli. Terror também é a expectativa de vida para trans
no Brasil, que (segundo a ANTRA) é de 35 anos. Não por doença. 35 anos e então
acontece o cerco no beco sem saída, feito uma cena de Scorsese. A transfobia no
Brasil não se contenta só com memes de WhatsApp, ela arregaça com barra de
ferro, madeira, pedra, punho fechado. Sempre em bando.
ex-nome, transição
“É extremamente invasivo e
desrespeitoso perguntar o nome pelo qual uma pessoa trans respondia antes da
transição”, diz Eli Bruno do Prado Rocha Rosa. Graças à publicação do
Provimento nº
73/2018, ele conseguiu retificar seus documentos no ano passado. Explica que
escolheu o novo nome de acordo com dois critérios: que fosse curto e que fosse
neutro. “O composto Bruno foi uma adição apenas porque seria esse o nome que
minha família teria me dado caso eu tivesse nascido com pênis.”
Antes do 73/2018, pessoas trans
não conseguiam a retificação de seus nomes sem laudos psicológicos arrastados.
E precisavam de sorte, pois a decisão judicial corria sempre o risco de cair
nas mãos de um juiz relutante – como se identidade de gênero fosse uma ameaça à
ordem-e-progresso. Hoje, o processo de alteração de nome para trans está menos invasivo:
independe de autorização externa, de tratamento hormonal,
de transgenitalização.
ginecologia, estética
Homens trans precisam de ginecologista,
ainda que relutem. Só que essa relutância tem fundamento – é um jeito de
resguardo, autodefesa. Porque ainda existe desinformação por parte de muitos
ginecologistas. E de recepcionistas, cujas perguntas deslocadas podem
constranger. “À parte da saúde ginecológica, eu faço exames de sangue e tenho
consultas com uma endocrinologista pelo SUS”, diz Eli. No CPATT de Curitiba,
ele tem acesso a um atendimento exclusivo para pessoas trans e consegue tirar
dúvidas em relação ao seu corpo.
Eli conta que, para ele, os conceitos de masculino
e feminino não fazem tanto sentido. “Ter o peito liso não é ser masculino, como
ter seios volumosos não é feminino.” A partir dessa fala, nota-se que a escolha
de formatos corporais não tem a ver com gênero, mas sim com gosto individual. Pessoas
trans (bem como pessoas cis) podem desejar ou não se submeter a cirurgias reparadoras.
No caso de Eli, existe a vontade de fazer a mastectomia, “por questões
estéticas, do mesmo jeito que alguém poderia querer fazer uma rinoplastia ou
uma lipo”.
pertencimento, seletividade
Nos círculos masculinos da sociedade, as atitudes
machistas podem caminhar nas linhas ou nas entrelinhas. Depende do círculo. Depende
do que está em jogo. “Muitos homens trans adotam posturas machistas para serem
vistos como iguais entre homens cis e eu compreendo que isso parte de uma
necessidade de pertencer a um grupo”, diz Eli. Nada mais humano: o grupo. Por
outro lado, há trans que não se sentem impelidos a legitimar o machismo.
Resistem. Mesmo que precisem abrir mão do amparo de alguns círculos.
Seletividade. “A saída pra manter alguma
estabilidade emocional tem sido me cercar de pessoas trans ou pessoas empáticas
ao movimento trans”, diz Eli, num desabafo sem suspiros. Ficar ao lado de gente
esclarecida. É por isso que nos grupos de convívio dele há um fluxo expressivo
de professores. Eli faz duas graduações: Filosofia na UFPR e Biblioteconomia na
Uniasselvi – cursando ainda uma extensão em LIBRAS. E trabalha na Casa de
Leitura Nair de Macedo, onde organiza seus rendimentos, suas amizades, suas
leituras.
feminismo,
realismo fantástico
“Se me perguntam se eu sou feminista, eu prefiro
me colocar como pró-feminismo. O local de fala não é meu, é das mulheres, ainda
que haja pautas em intersecção com homens trans”, diz Eli, num tom firme e
estável. Tom de quem pesquisa. Tom de quem sabe que há mais coisas no céu e na
terra do que sonha a filosofia de Horácio.
Até porque Horácio não pôde ler Cem anos de solidão. Eli pôde. “Foi uma
leitura e tanto pra mim.” Deve ter sido, pois o realismo fantástico instigou
Eli a se expressar na literatura: já publicou três livros. Mesmo sabendo que
hoje as pessoas preferem audiovisuais. Mesmo sabendo que a escrita é uma
prática sem muito retorno. Não importa. Tanto a literatura quanto a identidade
trans são assuntos pessoais – não dependem de tapinhas nas costas. No centro de
Curitiba, a vida de Eli está ok assim.