sábado, 1 de novembro de 2014

De um jeito ou de outro

*crônica publicada na Folha de Caxias: 22/06/2012

Você tem que assoprar com uma espécie de vigor suave, o que não é nada simples de alcançar. Mas o desafio mesmo é não desafinar quando, ali na partitura, aparece uma oitava acima: tarefa destinada ao meu dedão esquerdo (sua única ocupação no ritual todo, aliás). Talvez você não saiba: ao contrário do esquerdo, o dedão direito é o único dedo que não participa do rito rítmico. Ele é o dedo burocrático, tem apenas a função operária de sustentar o saxofone.
Meu ponto fraco está no mindinho esquerdo, já que são quatro os botões que ele deve supervisionar (o indicador direito também tem quatro chaves para pressionar, mas acontece que os indicadores são dedos mais independentes, e os meus são bem desembaraçados). Diferente do esquerdo, meu mindinho direito, astuto, adaptou-se sem dificuldades: são duas as chaves sob sua responsabilidade. A adversidade é quando ele pressiona a primeira dessas chaves. Daí eu preciso sempre fortalecer a intensidade do sopro: mais potência. Assopramento viripotente.
A palma da mão esquerda tem função tremendamente ativa. Ela pressiona a chave mais esquisita do sax (chave parecida com um daqueles velhos abridores de garrafa). Mas eu preciso mesmo é falar dos lábios. Na parte inferior da boquilha do sax há uma palheta. A minha é uma Vandoren-Paris-2, para aprendizes. A força com a qual você pressiona a palheta entre os lábios faz toda a diferença. Não se esqueça da língua. A língua trabalha na ponta da palheta, dando ali minúsculos e cadenciados encontrões (nessa parte de lábios e língua eu me viro com certa desenvoltura, pois quanto mais beijocas românticas você praticar, mais ritmo e manha você desenvolverá).
Escrevo estas linhas na companhia de John Coltrane. Ele está inquieto, tirando do sax uma poesia intensa e enigmática, com amplitudes e levezas, acelerações e brecadas. O sax do Coltrane não é igual ao meu. O dele é tenor, o meu é alto. Há ainda o barítono, o soprano, o baixo e o contrabaixo, se não me falha a memória instrumental.
 Simbólico e temporário. O saxofone foi uma experiência de apertados seis meses na minha vida, cujos frutos foram apenas dez músicas, entre as quais Tears in Heaven, de Eric Clapton, que estou prestes a assoprar, já que preciso me expressar um pouco, de um jeito ou de outro. Ali fora chove.

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