sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Trilhos

*crônica publicada na Folha de Caxias: 30/11/2012. 

O ano do nascimento dele eu desconheço. O que sei é o local: o menino negro nasceu na acanhada cidade chamada Haiti, no estado do Missouri, EUA. Mais tarde, em 1955, ele acomodou toda sua vida dentro de uma mala magra e rumou para Chicago. Arrumou lugar nos fundos de um clube noturno, no West Side. Sabia se infiltrar. E nas incursões dentro do clube o rapaz negro via no palco músicos graúdos, gente como Muddy Waters e Howling Wolf. Percebeu que aqueles caras realmente se divertiam enquanto tiravam blues dos seus instrumentos. Foi o estopim.
Casou-se cedo. E ganhou um cunhado músico, que o influenciou aos poucos. Em Chicago, o rapaz negro levava a banda do cunhado para cima e para baixo. Ajudava a esquematizar o aparato todo e depois (ah, depois) escutava blues raiz. Mas quando voltava para casa, o rapaz negro se frustrava pelo fato de não saber tocar fluentemente nenhum instrumento. Então começou a mergulhar no autodidatismo, na experimentação. Um dos seus primos (Ralph Ramey) ficou sabendo e disse que eles deveriam constituir a própria banda. “That’s a good idea, man.” 
O rapaz negro convidou seu irmão, que enganava na bateria, para participar do projeto. Após quatro meses improvisados, já faziam barulho. Certa noite foram tocar num clube conceituado, onde apresentaram duas músicas. O dono do lugar lhes ofereceu emprego. Com o emprego, vieram também convites para viajar – mas a mulher de Ralph Ramey objetou. O rapaz negro e seu irmão abandonaram o projeto e criaram nova banda, que também durou pouco.
Lá se foi o tempo e outras bandas foram formadas, pelo menos mais três. Daí o rapaz negro recebeu uma convocação para tocar seu instrumento (o contrabaixo) com Otis Rush, considerado o 53º melhor guitarrista de todos os tempos pela revista Rolling Stone. O resto é história. Uma história com infinitos quilômetros-canções-melancolias-blues.
O ano é 2012. Eu olho para o alto e distingo a lua, que me parece um abajur insuperável para o blues. Num dos palcos laterais do Mississippi Delta Blues Festival de Caxias do Sul (palco localizado na porta da antiga estação férrea), contemplo a voz e o contrabaixo do rapaz negro, Bob Stroger. Estou sentado nos trilhos do trem, a dois metros do senhor de terno-gravata-história, e penso em todos os trilhos que Bob Stroger já deve ter percorrido nas planícies deste mundo. Penso nos meus próprios trilhos. 


sábado, 1 de novembro de 2014

De um jeito ou de outro

*crônica publicada na Folha de Caxias: 22/06/2012

Você tem que assoprar com uma espécie de vigor suave, o que não é nada simples de alcançar. Mas o desafio mesmo é não desafinar quando, ali na partitura, aparece uma oitava acima: tarefa destinada ao meu dedão esquerdo (sua única ocupação no ritual todo, aliás). Talvez você não saiba: ao contrário do esquerdo, o dedão direito é o único dedo que não participa do rito rítmico. Ele é o dedo burocrático, tem apenas a função operária de sustentar o saxofone.
Meu ponto fraco está no mindinho esquerdo, já que são quatro os botões que ele deve supervisionar (o indicador direito também tem quatro chaves para pressionar, mas acontece que os indicadores são dedos mais independentes, e os meus são bem desembaraçados). Diferente do esquerdo, meu mindinho direito, astuto, adaptou-se sem dificuldades: são duas as chaves sob sua responsabilidade. A adversidade é quando ele pressiona a primeira dessas chaves. Daí eu preciso sempre fortalecer a intensidade do sopro: mais potência. Assopramento viripotente.
A palma da mão esquerda tem função tremendamente ativa. Ela pressiona a chave mais esquisita do sax (chave parecida com um daqueles velhos abridores de garrafa). Mas eu preciso mesmo é falar dos lábios. Na parte inferior da boquilha do sax há uma palheta. A minha é uma Vandoren-Paris-2, para aprendizes. A força com a qual você pressiona a palheta entre os lábios faz toda a diferença. Não se esqueça da língua. A língua trabalha na ponta da palheta, dando ali minúsculos e cadenciados encontrões (nessa parte de lábios e língua eu me viro com certa desenvoltura, pois quanto mais beijocas românticas você praticar, mais ritmo e manha você desenvolverá).
Escrevo estas linhas na companhia de John Coltrane. Ele está inquieto, tirando do sax uma poesia intensa e enigmática, com amplitudes e levezas, acelerações e brecadas. O sax do Coltrane não é igual ao meu. O dele é tenor, o meu é alto. Há ainda o barítono, o soprano, o baixo e o contrabaixo, se não me falha a memória instrumental.
 Simbólico e temporário. O saxofone foi uma experiência de apertados seis meses na minha vida, cujos frutos foram apenas dez músicas, entre as quais Tears in Heaven, de Eric Clapton, que estou prestes a assoprar, já que preciso me expressar um pouco, de um jeito ou de outro. Ali fora chove.