quarta-feira, 30 de setembro de 2020

*matéria 13

 

Dame Ndiaye é do mundo

Após rodar por muitos lugares e culturas, artista senegalês escolheu a vida em Caxias do Sul


Dame Ndiaye é do mundo. E por isso sabe se expressar em cinco idiomas: francês, inglês, espanhol, italiano e português. Sem contar o dialeto wolof, que é o titular em Dakar, a capital senegalesa, cidade onde Ndiaye nasceu e se criou. A infância em Dakar ofereceu a ele muito futebol e muito banho de mar. Era chute-passe e depois braçada-mergulho: a meninice que toda criança deveria ter. Só que Ndiaye cresceu, prestou atenção e viu que bola e mar sozinhos não fariam um homem.

O início da vida adulta foi difícil para ele no Senegal. Ainda mais porque os pais de Ndiaye morreram cedo. O pai era um motorista dedicado. A mãe, uma dona de casa que criou seis filhos – os cinco irmãos de Ndiaye continuam vivendo no Senegal, casados, todos envolvidos com o comércio. Então coube a ele o papel aventuroso de viajante, de entregador de notícias do mundo, de menino crescido cuja atração pelos mapas-múndi não terminaria tão cedo.

a África, a Europa

Ndiaye conta que já viajou por quase toda a África. Sem pegar avião. “É mais barato de ônibus”, ele diz, com calma, a língua portuguesa saindo fácil por trás da máscara protetora. Foram viagens exploratórias que lhe deram uma consciência mais afiada a respeito do continente africano, da negritude, das origens do homo sapiens. Na Costa do Marfim, por exemplo, resolveu alongar um pouco a sua estadia, vivendo no país durante três anos. “Eu gostava de lá.”

Mas a África ficou pequena para Ndiaye. E a Europa, essa sedutora, começou a se insinuar no imaginário. Insinuações que fizeram com que Ndiaye se experimentasse na Espanha, França e Itália. Ele fala sobre Nápoles, cidade do Vesúvio e da Camorra, cidade que reúne as maiores contradições italianas: dinheiro e lixo, arte e degradação, natureza linda e certa feiura de espírito. Como em todos os lugares pelos quais Ndiaye já havia passado, ele sabia que Nápoles seria só uma baldeação, parada temporária, porque o Brasil já havia se infiltrado em seus pensamentos itinerantes.

o Brasil, os pontos não turísticos

O Rio de Janeiro foi a largada de Ndiaye por aqui. Dividia um apartamento com amigos em Niterói. E ia todos os dias ao fervo de Copacabana e da Lapa, para vender os seus caprichados artefatos de madeira: esculturas de faces e silhuetas. Depois de incorporar o jeito carioca, ele alternou períodos em São Paulo e Curitiba, até se descobrir em Caxias do Sul, cidade dos imigrantes italianos, hoje dos imigrantes senegaleses. E haitianos. E venezuelanos.

Ndiaye nunca teve tempo extra para visitar pontos turísticos. Não foi ao morro do Cristo nem ao Pão de Açúcar. Não fez caminhadas preguiçosas pelo Minhocão paulistano nem pelo Edifício Copan. Não descobriu a curitibana Ópera de Arame. Mas, diferente de uma parcela enorme de brasileiros polarizados que evitam uns aos outros, Ndiaye conversou com muita gente, sempre olhando nos olhos, sempre intuindo que, mais do que os pontos turísticos, o que vale mesmo são as conexões entre seres, os pontos humanos.

o caxiense, o gaúcho

Aos 47 anos, Ndiaye está há três em Caxias – foi inclusive casado por um tempo com uma caxiense. Se por um lado essa união durou pouco, existe um outro tipo de união que já dura quinze anos para Ndiaye: seu filho, Basirou, que vive no Senegal. “Eu falo com ele todos os dias.” E narra para Basirou as caraterísticas da cidade, o Parque dos Macaquinhos, a Avenida Júlio, o Juventude e a SER Caxias.

Pelo celular, Ndiaye conta para Basirou também sobre o Fogo de Chão e o Clube do Gaúcho, locais que ele já frequentou, tentando até mesmo dar uns passinhos de dança regional. “Mas eu não sei nada do gaúcho, só conheço o churrasco, que é muito bom”, diz, sorri e fica meio encabulado, aquela encabulação de quem é humilde e bom de espírito, de quem, por conta da religião muçulmana, não bebe álcool e jamais desrespeita os outros.

o sonho, o destino

Ainda lá na infância em Dakar, entre chute-passe e braçada-mergulho, o sonho de Ndiaye era comprar uma casa para os pais, dar-lhes conforto. Não foi possível, devido à privação financeira e às mortes prematuras dos seus. Era como se, de repente, ao fim de mais um dia quente nas regiões periféricas de Dakar, o adolescente Ndiaye enfim percebesse que sonho por sonho não garantia nada, não assegurava nada.

Mas nem por isso ele deixou de visualizar objetivos novos para sua vida. “A gente nunca sabe o que vai acontecer”, diz. E confessa que seria bom se encontrasse outra companheira, uma pessoa com quem pudesse dividir os ricos e os pobres momentos, as confianças e as dúvidas, a idade e o tempo, alguém que segurasse firme a mão de Ndiaye e ouvisse com carinho as suas histórias sobre o mundo, o Senegal, o destino.


*matéria 12

 

O universo escultórico 

de Ale Amorin

Nos fundos de uma casa do bairro Lourdes, escultor caxiense produz obras que são referência internacional



Conforme o evangelho dos escultores, um dia antes de criar Adão, Deus pediu a Ale Amorin opiniões sobre a confecção do crânio: formato, tamanho, textura. Simplesmente porque crânios são uma das obsessões do caxiense de 49 anos. Mas uma obsessão escultórica que chegou aos poucos, respeitando a hierarquia das influências antes de esculpir, Ale Amorin ouviu música, cortou cabelo, desenhou e tatuou muito.  

Essas referências de arte criaram nele um repertório alargado. Criaram um modo de olhar. Um modo de reproduzir de maneira artística o anatômico, o orgânico, o núcleo que constitui o que de fato somos. E o que somos é carne, é sangue, é nervo, é osso — assim como também somos decomposição gradativa, crânios revestidos de cabelo e pele. Esse entendimento Ale Amorin tem há tempos.

tattoo, seletividade

Em 1991, Ale Amorin saiu em busca de estudos e de instrumentos para tattoo. “Fui fazendo o melhor que eu podia, apesar das limitações daqui.” Até que, em 1992, ele descobriu que nos EUA e na Europa havia convenções de tatuadores, locais onde seria possível interagir com os seus heróis: Paul Booth, Filip Leu, Guy Aitchison e Tin Tin. Nascia ali um intercâmbio de metodologias, que em certa época fez com que o caxiense tivesse a maior distribuidora de materiais tatuatórios do Brasil.

Ele explica que, em termos de estilo, há vários tipos de tatuadores. “Uma marca registrada minha era o trabalho preto e sombra, além do orgânico”, diz, a voz num tom ameno, sossegado. O seu estúdio de tattoo em Caxias funcionou por cerca de quinze anos. Aos poucos, houve a troca da quantidade pelo tatuar seletivo, fazendo com que o ofício se tornasse para ele uma espécie de ritual esporádico, restringido só a amigos e fãs. “Ainda conservo um estúdio privado em casa.”

Kiss, estética

A banda norte-americana Kiss tem um papel central na vida de Ale Amorin. “Já fui a uns vinte shows dos caras.” Tanto que, durante os anos em que tatuou de maneira constante, ele costumava deixar um CD do Kiss tocando ao fundo em volume nem sempre tão baixo. Para gerar atmosfera. Para gerar uma conexão com o mundo hipervisual da banda, uma hipervisualidade que fascinou Ale Amorin desde os catorze anos.

“Mas o que eu curti primeiro foi o som deles. O gosto pela estética visual veio depois.” E essa estética influenciou bastante as esculturas dele, já que a banda Kiss é conhecida pelas maquiagens efusivas, pelo uso cênico do fogo, pelas representações de jorramento de sangue nos shows. “De uma forma meio romântica, isso tudo acaba aparecendo nas minhas esculturas, está presente nos crânios e nas decomposições.”

raízes, fascínios

Ale Amorin conta que, embora tenha começado a esculpir tarde, a atração pela escultura é anterior a tudo. Durante a infância, por exemplo, quando ia ao centro de Caxias, ele sempre queria fazer uma parada numa casa de artigos para Umbanda. “Na entrada havia uma preta e um preto-velho sentados, os quais, em minha mente infantil, me impunham um respeito que eu não tinha nem por pessoas de verdade.”

As primeiras esculturas dele surgiram em 2006, mas foi só em 2011 que Ale Amorin iniciou sua carreira como escultor profissional. Sua escola escultórica é a cerâmica. “O timing da argila, as formas de queima, os revestimentos e todo o processo envolvido me fascinavam.” E fascinados também ficam os entregadores de matéria-prima quando entram na sala de crânios, para soltar os sacos de talco industrial. “As reações são engraçadas.”

fronteiras, God of Thunder

Em 2018, Ale Amorin publicou, via Financiarte, o livro imagético Esculturas (Editora São Miguel, 258 páginas), cujo miolo apresenta as peças que o escultor criou entre 2012 e 2018. Peças que foram vendidas para todo o Brasil, assim como para os EUA, Portugal, França, Holanda, Suíça, países da Ásia e também aqui da América Latina. São fronteiras que se expandem.

Como se expande a música God of Thunder, do Kiss, enquanto o escultor aquece os dedos para refinar um de seus trabalhos — talvez um retrabalho no crânio de Adão, o crânio pioneiro, a obra que deixou inclusive Deus em dúvida, o crânio matriz em cuja mandíbula de cerâmica ainda é possível ver uma etiqueta meio  apagada pelo fogo bíblico: Ale Amorin, bairro Lourdes, Caxias do Sul-RS.