Nelfy abraça os recomeços
Os descaminhos e os cachorros-quentes da colombiana de Miranda
Se a
Netflix descobrisse a história de Nelfy Vargas, talvez a transformasse em sua
nova série. Roteiro não faltaria. Drama latino-americano não faltaria. Essa afetuosa
colombiana de 50 anos — há 16 no Brasil — veio para Caxias do Sul em
busca de um recomeço, de uma reinvenção identitária. Isso porque alguns trechos
do passado dela se tornaram pesados demais, roteirizados demais, como se o
excesso de reviravoltas tivesse esgotado o olhar de Nelfy.
Eis aí
algo em comum entre a Colômbia e o Brasil: embora sejam países ricos de culturas
e de paisagens, ambos possuem algumas facetas menos simpáticas. Facetas atravessadas
pela violência, pelo mercado oculto, pelos jogos de poder que muitas vezes causam
danos colaterais. É por isso que não há novidade no fato de que colombianos e
brasileiros, de uma hora para outra, correm o risco de ser golpeados pelo
destino. Nelfy foi golpeada quatro vezes.
Maria e José
Existe uma coincidência de
nomes. E de tragédias. A Bíblia relata em seus evangelhos que o filho de Maria
e José foi brutalmente assassinado. Já na Colômbia dos anos 1990 os
assassinados foram Maria e José, os pais de Nelfy — pais
que estavam inseridos na política local. Chamavam-se Maria Dalis Campo e José
Vargas, nomes que há três décadas vivem na lembrança, na interioridade de
Nelfy.
Por cinco segundos, a voz dela
hesita em continuar. São 13h40 de terça-feira e, na esquina da Avenida Júlio com
a Feijó Júnior, o barulho reincidente do trânsito está preenchendo o silêncio de
Nelfy. Não há insistência para que ela continue a falar, mas assim mesmo surge
o dado faltante: na Colômbia, além dos pais de Nelfy, um dos irmãos e o primeiro
marido dela também foram assassinados.
cachorro-quente, interculturalidade
Quando
atende clientes caxienses, Nelfy usa uma linguagem meio híbrida, rica, com um
pouco de espanhol encaixado nas frestas do português. O interessante é que às
vezes a barraquinha dela se transforma num ponto de encontro para os
colombianos que vivem aqui, o que faz surgir uma atmosfera cheia de interculturalidade,
de narrativas estrangeiras — tudo isso ao lado da simpatia de Nelfy, da
atitude convidativa dela, tornando a colombiana uma anfitriã que sabe servir e
agradar.
Roosevelt, Miranda
Nos anos 1930, Roosevelt foi o 32º presidente dos EUA. Hoje, é o
atual marido de Nelfy. “Ele é brasileiro, de Belém do Pará”, ela diz. E deixa
que os olhos brilhem forte ao descrever Roosevelt: “É meu companheiro, meu
amigo, meu amor, minha tranquilidade”. Junto com eles, em Caxias, vivem os dois
filhos de Nelfy, Cristian e Mairon — um
trabalha numa churrascaria, já o outro lida com descarga de caminhões e estoque
de mercadorias.
Nelfy conta que tenta visitar a Colômbia a cada quatro anos,
para rever parentes e lugares. Sua cidade natal se chama Miranda e está
localizada no Departamento de Cauca. É uma localidade pequena — Nelfy supõe que uns 25 mil colombianos talvez vivam
lá hoje. Conforme a narração dela, a infância em Miranda foi divertida e girou
em torno de subidas em árvores e degustações de frutas. “Algumas frutas que a
gente tem lá eu nunca achei por aqui”, diz e abre um sorriso bilíngue.
entrosamento, salmo 91
Como todo mundo sabe, o entrosamento entre Brasil
e Colômbia cresceu muito em 2016, quando o voo da Chapecoense caiu em solo
colombiano, próximo a Medellín. Nelfy comenta que, se por um lado foi uma perda
difícil para as famílias envolvidas, por outro lado ela percebeu uma
aproximação carinhosa entre os países, como se brasileiros e colombianos
tivessem se tornado irmãos, cúmplices na dor.
Dor. Perda. Descaminho. Situações de vida que Nelfy
conheceu nos anos 1990 na Colômbia. E que a aproximaram do salmo 91, o
preferido dela, cujo quinto versículo é direto: “Não temerás os terrores da
noite, nem a seta que voa de dia”. Até porque de dia Nelfy permanece
focada no cachorro-quente mais multicultural de Caxias do Sul. “Às vezes chego
a vender 30 no mesmo expediente”, ela diz, abraçando a si mesma, abraçando aqueles
quatro familiares que — embora apenas lembranças — ainda a acompanham de perto.